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terça-feira, 25 de novembro de 2014

Resumo do livro: Bullying e Desrespeito: Como Acabar com essa Cultura na Escola

Bullying e Desrespeito: Como Acabar com essa Cultura na Escola

Marie Nathalie Beaudoin e MaureenTaylor

A obra é composta por duas partes: a primeira traz os fundamentos teóri cos e as novas perspectivas para investigação da questão do Bullying e do desrespeito; a segunda contém exemplos que mostraram ser eficientes na
tentativa de contornar os efeitos dessas práticas. O livro conta, ainda, com uma sessão de material de apoio contendo cartas de professores e o relato de experiências envolvendo o Bullying e o desrespeito no ambiente escolar.
O livro retrata o fenômeno do Bullying, caracterizado por formas de intimidação diretas ou indiretas que vão desde simples gozações até atitudes violentas desencadeadas pela incapacidade de lidar com a diferença.
Na parte I, intitulada “Estabelecendo os fundamentos”, as autoras abordam o panorama de influências culturais que limitam as possibilidades de opções de ação do sujeito para solucionar problemas. Tais possibilidades somente se tor-
nam possíveis dentro de discursos sociais nos quais estão inseridas. Dessa forma, a cultura age no indivíduo de forma a criar bloqueios que vão restringir as opções em determinadas situações da vida.
Para entender o Bullying, é preciso analisar o contexto cultural e as questões psíquicas que fazem com que o sujeito o desenvolva.
As autoras mostram como os incentivos à competição no ambiente escolar influenciam os problemas relacionados ao desrespeito. Tal metodologia vem sendo muito empregada, trazendo várias implicações como estimular o individualismo e atrapalhar a convivência cooperativa entre os alunos.
Nas instituições escolares da sociedade capitalista, onde prevalecem as regras, a competição e a avaliação, os alunos são vistos como produtos que podem ser constantemente melhorados para ser mais produtivos. Essa ma-
neira quantitativa de avaliar os desempenhos mostra um retrato momentâneo de um aspecto do contexto que pode contribuir para aumentar a práti ca do Bullying.
De acordo com Marie-Nathalie e Maureen Taylor, não se pode mudar uma determindada cultura de uma só vez. Desta forma, as práticas inovadoras devem permitir aos alunos uma reflexão crítica sobre elas.
Os educadores, antes de rotular os alunos como adequados ou inadequados, precisam transformar sua percepção diante dos fatos e passar a ter uma compreensão contextual para alguns problemas considerados “fora de padrão”.
Outra forma de visualizar esse contexto vem disposta pelas autoras no livro, em forma de 4 ‘C’: curiosidade, compaixão, colaboração e contextualização da perspectiva. A curiosidade se encontra na habilidade dos educadores em fazer perguntas úteis; a compaixão se refere a olhar para a boa intenção para que o indivíduo possa adotar condutas mais respeitosas; a colaboração implica minimizar o desequilíbrio de poder entre professores e alunos e, por último, a contextualização da perspectiva, que vem desconstruir e examinar as influên cias culturais que o indivíduo sofre em dada circunstância.
Como forma de observar o problema, as autoras trazem o conceito de “exteriorização”, baseado na idéia de que os problemas, assim como os hábitos indesejados, desenvolvem-se devido a uma série de circunstâncias, o que implica a “exteriorização” para uma percepção do problema, distinguindo-o da identidade da pessoa.
Para evitar o Bullying não é preciso falar em respeito, pois nem sempre essa palavra encontra elo na vida do sujeito. Ele pode até saber o que significa, porém não lhe será útil, caso não seja vivenciado.
Dessa forma, os educadores devem advir de experiências respeitosas para que essas sejam mais importantes e significativas para a vida dos alunos.
Conforme elucidado pelas autoras, a compreensão das experiências pode trazer mudanças que devem ser encaradas como processo e não como algo que decorre instantaneamente. Para que essas mudanças permaneçam é preciso encarar os vários “eus” que compõem uma pessoa, pois o “eu” se constitui nas experiências com outros indivíduos, daí ele ser composto por diferentes “eus”.
Como forma de evitar a prática do Bullying, é preciso que os alunos reconheçam um “eu” preferido (positivo) e que sejam estimulados a manter esse reconhecimento como algo seqüencial e não isolado.
A parte dois do livro traz exemplos de sucesso na superação do Bullying e do desrespeito. Para isso, Marie-Nathalie e Maureen Taylor contaram com apoio de 230 educadores e alunos do Ensino Fundamental. O livro ainda traz entrevistas com alunos, mostrando como eles vêem o sistema educacional.
A obra apresenta uma forma de cultivar o respeito no ambiente escolar e tornar isso uma prática, criada por meio de vínculos pessoais e do trabalho de aceitação do outro, fazendo com que os alunos sejam tolerantes e aceitem as diferenças.
Infere também uma forma de tornar o meio acadêmico um lugar menos susceptível aos problemas do desrespeito através da apreciação, ou seja, da expressão do reconhecimento, da gratidão e da admiração nas relações interpessoais. Essa apreciação deve abranger alunos, professores e funcio nários da escola em geral.
Aos educadores, cabe incentivar a colaboração e evitar a concorrência entre os alunos, além de disponibilizar tempo e estimular a auto-reflexão, pois, será nesses momentos que o indivíduo irá se reenergizar e construir um propósito de vida.
A escola deve permitir o envolvimento com a comunidade, valorizar as diferenças que compõem os grupos e mostrar que cada uma dessas diferenças traz aspectos positivos às experiências grupais, sem esquecer de que se deve evitar as práticas adultistas, ou seja, não permitir que os adultos exerçam poder extremado sobre as crianças.
As autoras apresentam o projeto “Bicho que irrita”, uma prática inovado ra que envolve atividades de diversão e de expressão, para que o ambiente escolar seja repleto de respeito. Esse projeto é diferente dos outros métodos que vêm apenas tratando do desrespeito de forma didática. Ele, ao contrá rio, permite o envolvimento da criança com a necessidade de exteriorização do que a irrita, de forma lúdica, favorecendo o desenvolvimento de um ambiente escolar de respeito e acolhida.
O livro disponibiliza formas de trabalhar o indivíduo envolvido com o Bullying, observando todos os aspectos que possa influenciar essa prática, como o ambi ente familiar, escolar e social, salientando a importância do contexto em que esse sujeito se encontra, bem como ele se vê nesse contexto.
Se os educadores conseguirem estabelecer um clima de atenção e de vínculo entre os alunos, gerando um ambiente respeitoso e acolhedor, onde as diferenças sejam discutidas sem que o professor se imponha como detentor do poder e do saber, o Bullying e o desrespeito tenderão a desaparecer.
Diante de tudo que foi exposto, “Bullying e desrespeito: como acabar com essa cultura na escola” é voltado para aqueles que estão inseridos na área educacional ou para os que desejarem informações sobre o desrespeito nas escolas e nas instituições. A linguagem, de fácil compreensão, e os exemplos trazidos na obra ajudam a entender os mecanismos em que se dá a prática. O livro apresenta, ainda, uma visão diferenciada da Educação e incentiva os estudos nessa área.
Naiara Guimarães Gasparoni
Jordana de Paula da Silva

Resumo: A Criança na Fase Inicial da Escrita: A Alfabetização como Processo Discursivo Ana Luiza Bustamante Smolka

A Criança na Fase Inicial da Escrita: A Alfabetização como Processo Discursivo

Ana Luiza Bustamante Smolka

Alguns pontos de partida
A alfabetização tem se revelado uma das questões sociais mais fundamentais em virtude de suas implicações político-econômicas e por ser ao mesmo tempo instrumento e veículo de uma política educacional que ultrapassa em muito o espaço meramente acadêmico e escolar. A ideologia da ‘democratização do ensino’ produz a ilusão de um maior número de alfabetizados no menor tempo possível. Ocorre que no processo da produção do ensino em massa as práticas pedagógicas aplicadas não apenas discriminam e excluem, como emudecem e calam.
Durante as décadas de 1960 e 1970, o Estado brasileiro difundiu e implementou a idéia da educação compensatória que, confundindo propositadamente ‘diferença’ com ‘deficiência’, criou e, de certa forma, consolidou inúmeros mitos com relação ao fracasso escolar: do mito da incapacidade da criança começou o surgir o mito da incompetência do professor.
Para ‘compensar’ esta nova ‘deficiência’ era necessário implementar os cursos de treinamento e os manuais didáticos para o professor malformado, mal-informado e desatualizado. “Numa surda situação de simulacro” – como escreve Smolka (1993, p. 16) – “em que os professores desconfiam das crianças e dos pais; os pais não confiam nos próprios filhos nem nos professores; as crianças aprendem a não confiar em si mesmas nem nos adultos, as relações interpessoais vão sendo camufladas, interrompidas e ninguém parece questionar as condições ou duvidar dos métodos” – enquanto que a escola se manteve a mesma e o problema da evasão sem solução.
Segundo Smolka, a escola que se mostrou deficiente em sua tarefa pedagógica de alfabetizar, passou a apontar cada vez mais uma série de ‘patologias’ nas crianças: dislexias, problemas psicomotores, foniátricos, neurológicos; o desinteresse total, a apatia, a falta de motivação, isto é, começam a ‘surgir’ nas crianças problemas que não, necessariamentes, elas os têm.
No começo da década de 1980, os pesquisadores brasileiros começam a ter acesso aos primeiros resultados do estudo de Emília Ferreiro sobre os processos de aquisição da linguagem escrita em crianças pré-escolares argentinas e mexicanas, indagando os métodos de alfabetização existentes. É a partir deste trabalho que Smolka desenvolveu sua pesquisa sobre os processos de aquisição da escrita nas crianças, cujos resultados este livro apresenta.
O que de fato se comprovou, segundo Smolka, foi a indiscutível influência das condições de vida das crianças no processo de elaboração e construção do conhecimento do mundo. E, nestas condições, o importante papel que desempenha a presença ou a ausência de adultos ou pessoas mais experientes, como interlocutores e informantes das crianças.
Salas de aula, relações de ensino
Entendendo que a alfabetização implica leitura e escritura como momentos discursivos, uma vez que o próprio processo de aquisição também vai se dando numa sucessão de momentos discursivos, de interlocução, de interação, Smolka discute neste segundo capítulo alguns parâmetros ou pontos de apoio para a análise que busca fazer em sua pesquisa. E vai buscá-los na Teoria da Enunciação e na Análise do Discurso.
A Teoria da Enunciação, extraída da obra de Bakhtin, aponta para a consideração do fenômeno social da interação verbal nas suas formas orais e escritas, procurando situar essas formas em ligação às condições concretas da vida, levando em consideração o processo de evolução da língua, isto é, sua elaboração e transformação sócio-histórica.
As referências para a Análise do Discurso, Smoka encontra em Orlandi e Pêcheaux. Enquanto para Orlandi o discurso pedagógico considera a função de ensinar do ponto de vista da escola e do professor: quem/ ensina/ o que/ para quem/ onde; Pêcheaux argumenta que todo processo discursivo supõe, da parte do emissor, uma antecipação das representações do receptor, isto é, sua habilidade de imaginar, de pensar onde seu ouvinte o enquadra, e que esta antecipação de ‘o que o outro vai pensar’ do lugar em que ele se representa como tal parece constitutiva de todo discurso.
Ambos os casos apontam para a ilusão em que vivem os professores que assumem a tarefa, a eles atribuída pela sociedade, de ensinar. Ou seja, da forma como tem sido vista na escola, a tarefa de ensinar adquiriu algumas características (é linear, unilateral, estática) porque, do lugar em que o professor se posiciona (e é posicionado), ele se apodera (não se apropria) do conhecimento; acredita que o possui (é levado a acreditar) e que sua tarefa é precisamente dar o conhecimento à criança. Desse modo, o professor monopoliza o espaço da sala de aula: seu discurso pré-domina e se impõe. Daí sucede que o estatuto do conhecimento passa pela escolarização, o que significa dizer que quem não vai à escola não possui conhecimentos.
A ilusão ao qual o professor está submetido decorre da não-consideração de vários aspectos cruciais no processo de convivência, interação e relação com os alunos, pais, colegas de trabalho, funcionários, superiores, no cotidiano da escola. Nesse lugar, o(a) professora(a) ocupa uma posição de responsável pelo processo de alfabetização e assume a tarefa de ensinar crianças a ler e a escrever. Nesse mesmo lugar, as crianças ocupam uma posição de alunos, e assumem a tarefa de aprender a ler e a escrever. Isto parece claro e evidente, portanto, não se questiona.
Smolka dá como exemplo uma situação em que a professora escreve na lousa e propõe às crianças um exercício como o descrito, percebe-se que ela está desempenhando o papel a ela atribuído e imagina-se que assim esteja alfabetizando as crianças. Mas, pelos comentários da professora desta situação-exemplo verifica-se que as crianças não corresponderam às suas expectativas, isto é, não entendem o que devem fazer, nem executam a tarefa dada conforme era esperado. Isto indica que as ‘pressuposições’ não se confirmam, indica que existe algo nesta situação que não está sendo revelado, que é preciso procurar as ‘pistas’ que geralmente passam despercebidas e são tidas como irrelevantes nas análises das relações de ensino. A professora que sabe qual é a sua função dentro da sala de aula ensina crianças que ainda não desempenham seu papel dentro da sala de aula conforme o esperado. Isso gera na professora um sentimento de incapacidade, incompetência e fracasso que ela acaba por transferir para as crianças. Ou seja, como a tarefa suplanta ou apaga a relação de ensino, evidencia-se, então a luta de poder. Como elas não conseguem realizar as expectativas da professora, supõe-se e conclui-se que as crianças têm problemas; que elas são incapazes; que elas não prestam atenção e não tem os pré-requisitos desenvolvidos; o que significa dizer que não podem ser alfabetizadas. Essas conclusões e suposições, que na realidade se caracterizam como pressuposições, transformam-se em preconceitos. E é isso, segundo Smolka, que tem permeado, implicitamente, as relações de ensino.
Discutindo pontos de vista
Dentro desta perspectiva apontada no capítulo anterior, as falhas ou os erros estão sempre nas crianças e nunca nos procedimentos utilizados pela escola, que são sempre ‘cientificamente’ comprovados e legitimados. Entretanto, uma análise feita sob outra perspectiva pode nos apontar, entre outras coisas, que o que está subterrâneo nas práticas adotadas nas escolas pelos professores são concepções de aprendizagem e de linguagem que não levam em consideração o processo de construção, interação e interlocução das crianças, nem as necessidades e as atuais condições de vida das crianças fora do ambiente escolar e, por isso mesmo, podem ser consideradas historicamente ultrapassadas.
Como em inúmeras outras situações do contexto escolar, os movimentos de interação entre as crianças e entre as crianças e o professor são cerceados por questões disciplinares: o silêncio em sala de aula, por exemplo. Dessa forma, a alfabetização na escola fica reduzida a um processo, individualista e solitário, que pouco tem a ver com as experiências de vida e de linguagem das crianças. Nesse sentido, é estéril e estática, porque baseada na repetição, na reprodução, na manutenção do status quo. Configura-se assim um tipo de sujeito que não precisa perguntar, que não precisa da ajuda dos outros para aprender.
De um ponto de vista construtivista, essa situação escolar se colocaria como insustentável uma vez que não considera o ponto de vista da criança que aprende, não leva em consideração os processos de elaboração do conhecimento sobre a escrita. Para compreender esta questão, Smolka se ampara na pesquisa de Ferreiro & Teberosky que partem do pressuposto de que a criança é um sujeito ativo e conhecedor, as autoras indicam a importância de se compreender a lógica interna das progressões das noções infantis sobre a escrita, mostrando que as crianças exigem de si mesmas uma coerência rigorosa no processo de construção do conhecimento. Nesse processo, as autoras mostram a importância do erro como fundamentalmente construtivo na superação de contradições e conflitos conceituais, explicitando, numa progressão, etapas e hipóteses que as crianças levantam sobre a escrita: em outras palavras, o processo de aprendizagem não é conduzido pelo professor, mas pela criança.
Porém como alerta Smolka, as análises de Ferreiro e Teberosky não podem dar conta, em termos político-pedagógicos, do fracasso da alfabetização escolar. Elas mostram mais um fator que precisa ser conhecido e observado no processo de alfabetização que são o significado e a importância das interações, mas não resolvem nem pretendem resolver o problema. No entanto, os estudos destas autoras acabou sendo incorporado pelas redes de ensino sem à devida adaptação à realidade educacional brasileira, o que faz com que alguns conceitos provenientes da educação compensatória sejam, agora, substituídos pelo linguajar construtivista, novamente culpabilizando a criança pela não-aprendizagem, pela não-compreensão.
O que acontece de fato, mas que permanece implícito, é que o ensino da escrita, cristalizando a linguagem e neutralizando (e ocultando) as diferenças, provoca um conflito fundamentalmente social. Porque não se ‘ensina’ simplesmente a ‘ler’ e ‘escrever’, aprende-se a usar ‘uma’ forma de linguagem, ‘uma’ forma de interação verbal, ‘uma’ atividade, ‘um’ trabalho simbólico: em outras palavras, o processo de elaboração mental da criança na construção do conhecimento sobre a escrita, que primeiramente passa pela linguagem falada, fica comprometido porque a escrita apresentada na escola está longe da linguagem falada pelas crianças.
A emergência do discurso na escrita inicial
Neste capítulo, a autora discute que a alfabetização não significa apenas a aprendizagem da escrita de letras, palavras e frases. A alfabetização implica, desde a sua gênese, a constituição do sentido. Enquanto que a escola parece ocupada em ensinar as crianças a repetirem e reproduzirem palavras e frases feitas, isto é, não trabalha com as crianças o ‘fluir do significado’, a estruturação deliberada do discurso interior pela escritura. Essa escrita precisa ser sempre permeada por um sentido, por um desejo, e implica ou pressupõe, sempre, um interlocutor. Desse modo, implica, mais profundamente, uma forma de interação com o outro pelo trabalho de escritura – para quem eu escrevo o que escrevo e por que?
Segundo Smolka, quando as crianças escrevem palavras soltas ou ditadas pelos professores, a característica da escritura é uma, e identifica-se, mais facilmente, a correspondência entre a dimensão sonora e a extensão gráfica. Mas quando as crianças começam a escrever o que pensam, o que querem dizer, contar, narrar, elas escrevem porções, fragmentos do ‘discurso interior’ (que é sempre diálogo consigo mesmo ou com outros).
Em termos pedagógicos, então, o que se faz relevante aqui é o fato de que, quando se permite as crianças falarem e se relacionarem em sala de aula, questões vitais para elas vêm à tona e se tornam ‘matéria-prima’ do processo de alfabetização. Nessas conversas, concepções, pressuposições e valores se revelam. Assim, o texto de cada criança não repete ou reproduz o texto coletivo, mas permite que se inaugure novos momentos de interlocução, de acordo com o que pareceu mais importante e relevante para cada uma, pelo que cada uma disse ou deixou de dizer. São os modos de perceber, de sentir, de viver, de conviver, de conhecer e de pensar o mundo que as crianças passam a expressar. A escrita começa a se tornar uma forma de interação consigo mesma e com os outros, uma forma de ‘dizer’ as coisas. Com todas as hesitações, trocas e tentativas ortográficas, a criança passa a escrever o que ela quer ou precisa dizer. Entretanto, a função da escritura ‘para outro’ e a presença de interlocutores também provocam uma tensão: no esforço de explicação do discurso interior, abreviado, sincrético, povoado de imagens – é nesse trabalho de explicitação das idéias por escrito para o outro que as crianças vão experimentando e aprendendo as normas de convenção porque é justamente da leitura do outro, da leitura que o outro faz (ou consegue fazer) do meu texto, daquilo que eu escrevo no meu texto, do distanciamento que eu tomo da minha escrita, que eu me organizo e apuro esta possibilidade de linguagem, esta forma de dizer pela escritura.
Aqui, novamente, se apresenta a questão dos procedimentos de ensino da leitura e da escrita na escola: a escola tem ensinado as crianças a escrever, mas não a dizer – e sim, repetir – palavras e frases pela escritura; tem ensinado as crianças a ler um sentido supostamente unívoco e literal das palavras e dos textos e tem banido (reprovado) aqueles que não conseguem aprender o que ela ensina, culpando-os pela incapacidade de entendimento e de compreensão. O que a escola não percebe é que a incompreensão não é resultado de uma incapacidade do indivíduo, mas de uma forma de interação.

Resumo do livro: A Importância do Ato de Ler: em três Artigos que se Completam Paulo Freire

A Importância do Ato de Ler: em três Artigos que se Completam

Paulo Freire

Introdução
O livro “A Importância do Ato de Ler” de Paulo Freire, relata os aspectos da biblioteca popular e a relação com a alfabetização de adultos desenvolvida na República Democrática de São Tomé e Príncipe.
Ao mesmo tempo, nos esclarece que a leitura da palavra é precedida da leitura do mundo e também enfatiza a importância crítica da leitura na alfabetização, colocando o papel do educador dentro de uma educação, onde o seu fazer deve ser vivenciado, dentro de uma prática concreta de libertação e construção da história, inserindo o alfabetizando num processo criador, de que ele é também um sujeito.
1 - a importância do ato de ler
Segundo Paulo Freire a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra. O ato de ler se veio dando na sua experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do mundo do pequeno mundo em que se movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo da sua escolarização, foi a leitura da “palavra mundo”. Na verdade, aquele mundo especial se dava a ele como o mundo de sua atividade perspectiva, por isso, mesmo como o mundo de suas primeiras leituras. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto em cuja percepção experimentava e, quando mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão ia aprendendo no seu trato com eles, na sua relação com seus irmãos mais velhos e com seus pais.
A leitura do seu mundo foi sempre fundamental para a compreensão da importância do ato de ler, de escrever ou de reescrevê-lo, e transformá-lo através de uma prática consciente.
Esse movimento dinâmico é um dos aspectos centrais do processo de alfabetização que deveriam vir do universo vocabular dos grupos populares, expressando a sua real linguagem, carregadas da significação de sua experiência existencial e não da experiência do educador.
A alfabetização é a criação ou a montagem da expressão escrita da expressão oral. Assim as palavras do povo, vinham através da leitura do mundo. Depois voltavam a eles, inseridas no que se chamou de codificações, que são representações da realidade. No fundo esse conjunto de representações de situações concretas possibilitava aos grupos populares uma “leitura da leitura” anterior do mundo, antes da leitura da palavra. O ato de ler implica na percepção crítica, interpretação e “re-escrita” do lido.
1.1 - Alfabetização de Adultos e Biblioteca Populares: Uma introdução
Para Paulo Freire falar de alfabetização de adultos e de biblioteca populares é falar, entre muitos outros, do problema da leitura e da escrita. Não da leitura de palavras e de sua escrita em si próprias, como se lê-las e escrevê-las, não implicasse uma outra leitura da realidade mesma, para aclarar o que chama de prática e compreensão crítica da alfabetização.
Do ponto de vista crítico é tão impossível negar a natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político. Quanto mais ganhamos esta clareza através da prática, mais percebemos a impossibilidade de separar a educação da política e do poder.
A relação entre a educação enquanto subsistema e o sistema maior são relações dinâmicas contraditórias. As contradições que caracterizam a sociedade como está sendo, penetram a intimidade das instituições pedagógica em que a educação sistemática se está dando e alterando o seu papel ou o seu esforço reprodutor da ideologia dominante.
O que temos de fazer então, enquanto educadoras ou educadores, é aclarar assumindo a nossa opção que é política, e ser coerentes com ela na prática.
A questão da coerência entre a opção proclamada e a prática é uma das exigências que educadores críticos se fazem a si mesmos. É que sabem muito bem que não é o discurso o que ajuíza a prática, mas a prática que ajuíza o discurso. Quem apenas fala e jamais ouve; quem “imobiliza” o conhecimento e o transfere a estudantes, quem ouve o eco, apenas de suas próprias palavras, quem considera petulância a classe trabalhadora reivindicar seus direitos, não tem realmente nada que ver com a libertação nem democracia.
Pelo contrário, quem assim atua e assim pensa, consciente ou inconsciente, ajuda a preservação das estruturas autoritárias.
Só educadoras e educadores autoritários negam a solidariedade entre o ato de educar e o ato de ser educado pelos educandos.
Uma visão da educação é na intimidade das consciências, movida pela bondade dos corações, que o mundo se refaz. É, já que a educação modela as almas e recria corações ela é a alavanca das mudanças sociais.
Se antes a transformação social era entendida de forma simplista, fazendo-se com a mudança, primeiro das consciências, como se fosse a consciência de fato, a transformadora do real, agora a transformação social é percebida como um processo histórico.
Se antes a alfabetização de adultos era tratada e realizada de forma autoritária, centrada na compreensão mágica da palavra doada pelo educador aos analfabetos; se antes os textos geralmente oferecidos como leitura aos alunos escondiam a realidade, agora pelo contrário, alfabetização como ato de conhecimento, como um ato criador e como ato político é um esforço de leitura do mundo e da palavra. Agora já não é possível textos sem contexto.
A alfabetização de adultos e pós-alfabetização implicam esforços no sentido de uma correta compreensão do que é a palavra escrita, a linguagem, as relações com o contexto de quem fala, de quem lê e escreve, compressão, portanto da relação entre “leitura” do mundo e leitura da palavra. Daí a necessidade que tem uma de biblioteca popular, buscando o adentramento crítico no texto, procurando aprender a sua significação mais profunda, propondo aos leitores uma experiência estética, de que a linguagem popular é inteiramente rica.
A forma com que atua uma biblioteca popular, a constituição do seu acervo, as atividades que podem ser desenvolvidas no seu interior, tudo isso tem que ser como uma certa política cultural.
Se antes raramente os grupos populares eram estimulados a escrever seus textos, agora é fundamental fazê-lo, desde o começo da alfabetização para que, na pós-alfabetização, se vá tentando a formação do que poderá vir a ser uma pequena biblioteca popular com a inclusão de páginas escritas pelos próprios educandos.
1.2 - O Povo diz a sua Palavra ou a Alfabetização em São Tomé e Príncipe
Segundo Freire com a alfabetização de adultos no contexto da República Democrática de São Tomé e Príncipe, a cujo governo vem dando juntamente com Elza Freire, uma contribuição no campo da educação de adultos como assessor, se torna indispensável uma concordância em torno de aspectos fundamentais entre o assessor e o governo assessorado. Seria impossível, por exemplo, dar uma colaboração, por mínima que fosse a uma campanha de alfabetização de adultos promovido por um governo antipopular. Não poderia assessorar um governo que em nome da primazia da “aquisição” de técnicas de ler e escrever palavras por parte dos alfabetizando, exigi-se, ou simplesmente sugerisse que fizesse a dicotomia entre a leitura do texto e a leitura do contexto. Um governo para quem a leitura do concreto, o desenvolvimento do mundo não são um direito do povo, que, por isso mesmo, deve ficar reduzido à leitura mecânica da palavra.
É exatamente este aspecto importante — o da relação dinâmica entre a leitura da palavra e a leitura da realidade em que nós encontramos coincidentes os governos de São Tomé e Príncipes e nós.
Todo esforço que vem sendo feito em São Tomé e Príncipe na prática da alfabetização de adultos como na da pós-alfabetização se orienta neste sentido. Os cadernos de cultura popular vêm sendo usados pelos educandos como livros básicos, com exercícios chamados Praticar para o Aprender. A linguagem dos textos é desafiadora e não sloganizado. O que se quer é a participação efetiva do povo enquanto sujeito, na reconstrução do país, a serviço de que a alfabetização e a pós-alfabetização se acham. Por isso mesmo os cadernos não são nem poderiam ser livros neutros, é a participação crítica e democrática dos educandos no ato de conhecimento de que são também sujeitos. É a participação do povo no processo de reinvenção de sua sociedade, no caso a sociedade são tomense, recém-independente do jugo colonial, que há tanto tempo a submetia.
É preciso, na verdade, que a alfabetização de adultos e a pós-alfabetização, a serviço da reconstrução nacional, contribuam para que o povo, tomando mais e mais a sua História nas mãos, se refaça na leitura da História, estando presente nela e não simplesmente nela estar representado.
No fundo o ato de estudar, enquanto ato curioso do sujeito diante do mundo é expressão da forma de estar sendo dos seres humanos, como seres sociais, históricos, seres fazedores, transformadores, que não apenas sabem, mas sabem que sabem.
O povo tem de conhecer melhor, o que já conhece em razão da sua prática e de conhecer o que ainda não conhece.
Nesse processo, não se trata propriamente de entregar ou de transferir às massas populares a explicação mais rigorosa dos fatos como algo acabado, paralisado, pronto, mas contar, estimulando e desafiando, com a capacidade de fazer, de pensar, de saber e de criar das massas populares.
Na alfabetização pós-alfabetização não nos interessa transferir ao Povo frases e textos para ele ir lendo sem entender. A reconstrução nacional, exigem de todos nós uma participação consciente em qualquer nível, exige ação e pensamento, exige prática e teoria, procurar descobrir de entender o que se acha mais escondido nas coisas e aos fatos que nós observamos e analisando.
A reconstrução nacional precisa de que o nosso Povo conheça mais e melhor a nossa realidade.
2 - análise das idéias do autor
Ao elaborar uma síntese das reflexões sobre o livro “A Importância do Ato de Ler” e as relações da biblioteca popular com a alfabetização de adulto de Paulo Freire, leva-nos a compreensão da prática democrática e crítica da leitura do mundo e da palavra, onde a leitura não deve ser memorizada mecanicamente, mas ser desafiadora que nos ajude a pensar e analisar a realidade em que vivemos. “É preciso que quem sabe, saiba sobre tudo que ninguém sabe tudo e que ninguém tudo ignora” (FREIRE, p.32).
É essencial que saibamos valorizar a cultura popular em que nosso aluno está inserido, partindo desta cultura, e procurando aprofundar seus conhecimentos, para que participe do processo permanente da sua libertação.
A biblioteca popular como centro cultural e não como um depósito silencioso de livros, é vista como um fator fundamental para o aperfeiçoamento e a intensificação de uma forma correta de ler o texto em relação com o contexto” (FREIRE, p.38).
Nesse sentido a atuação da biblioteca popular, tem algo a ver com uma política cultural, pois incentiva a compressão crítica do que é a palavra escrita, a linguagem, as suas relações com o contexto, para que o povo participe ativamente das mudanças constantes da sociedade.
O processo de aprendizagem na alfabetização de adultos está envolvida na prática de ler, de interpretar o que lêem, de escrever, de contar, de aumentar os conhecimentos que já têm e de conhecer o que ainda não conhecem, para melhor interpretar o que acontece na nossa realidade” (FREIRE, p. 48).
Isso só conseguimos através de uma educação que estimule a colaboração, que dê valor à ajuda mútua, que desenvolva o espírito crítico e a criatividade: uma educação que incentive o educando unindo a prática e a teoria, com uma política educacional condizente com os interesses do nosso Povo.
Conclusão
Concluímos com a leitura desse livro, nós educadores e educandos para melhorarmos nossa prática devemos começar a avalizar que, a importância do ato de ler, não está na compreensão errônea de que ler é devorar de bibliografias, sem realmente serem lidas ou estudadas. Devemos ler sempre e seriamente livros que nos interessem, que favoreçam a mudança da nossa prática, procurando nos adentrarmos nos textos, criando aos poucos uma disciplina intelectual que nos levará enquanto professores e estudantes não somente fazermos uma leitura do mundo, mas escrevê-lo o reescrevê-lo, ou seja, transformá-lo através de nossa prática consciente.
Sabemos que, se mudarmos nossa disciplina sobre o ato de ler, teremos condições de formar as nossas bibliotecas populares, incentivando os grupos populares e a escrever seus textos desde o início da alfabetização; assim iríamos aos poucos formando acervos históricos escritos pelos próprios educandos.
E através da cultura popular o que se quer é a afetiva participação do povo enquanto sujeito na construção do país, pois quanto mais consciente o povo faça sua história, tanto mais que o povo perceberá, com lucidez as dificuldades que tem a enfrentar, no domínio econômico, social e cultural, no processo permanente de sua libertação.

Resumo do livro: A PRÁTICA EDUCATIVA: COMO ENSINAR Antoni Zabala

A PRÁTICA EDUCATIVA: COMO ENSINAR

Antoni Zabala


O livro de Antoni Zabala objetiva “oferecer determinados instrumentos que ajudem [os professores] a interpretar o que acontece na aula, conhecer melhor o que pode se fazer e o que foge às suas possibilidades; saber que medidas podem tomar para recuperar o que funciona e generalizá-lo, assim como para revisar o que não está tão claro” (p.24).

1 A Prática Educativa: unidades de análise

O autor inicia o primeiro capítulo afirmando que “um dos objetivos de qualquer bom profissional consiste em ser cada vez mais competente em seu ofício” (p. 13). Esta competência é adquirida mediante o conhecimento e a experiência.
Para Zabala a melhora de qualquer das atuações humanas passa pelo conhecimento e pelo controle das variáveis que intervêm nelas. Conhecer essas variáveis permitirá ao professor, previamente, planejar o processo educativo, e, posteriormente, realizar a avaliação do que aconteceu. Portanto, em um modelo de percepção da realidade da aula estão estreitamente vinculados o planejamento, a aplicação e a avaliação.

Para analisar a prática educativa: como ensinar, Antoni Zabala elege como unidade de análise básica a atividade ou tarefa – exposição, debate, leitura, pesquisa bibliográfica, observação, exercícios, estudo, etc. – pois ela possui, em seu conjunto, todas as variáveis que incidem nos processos de ensino/aprendizagem. A outra unidade eleita são as sequências de atividades ou sequências didáticas: “conjunto de atividades ordenadas, estruturadas e articuladas para a realização de certos objetivos educacionais, que têm um princípio e um fim conhecidos tanto pelos professores como pelos alunos” (p. 18). Ou seja, a sequência didática engloba as atividades.

Apoiando em Joyce e Weil (1985), em Tann (1990) e em Hans Aebli (1988) Zabala determina as variáveis que utilizará para a análise da prática educativa, quais sejam: as sequências de atividades de ensino/aprendizagem ou sequências didáticas; o papel do professor e dos alunos; a organização social da aula; a maneira de organizar os conteúdos; a existência, as características e uso dos materiais curriculares e outros recursos didáticos; o sentido e o papel da avaliação.

Considerando a função social do ensino e o conhecimento do como se aprende como os instrumentos teóricos que fazem com que a análise da prática seja realmente reflexiva, Zabala utiliza dois grandes referenciais: o primeiro está ligado ao sentido e o papel da educação. As fontes utilizadas são a sócio-antropológica, que está determinada pela concepção ideológica da resposta à pergunta “para que educar?”; e a fonte epistemológica, que define a função do saber, dos conhecimentos e das disciplinas. Este referencial busca o sentido e a função social que se atribui ao ensino. O outro referencial engloba as fontes psicológica e didática. Dificilmente pode se responder à pergunta “como ensinar?”, objeto da didática, se não se sabe sobre os níveis de desenvolvimento, os estilos cognitivos, os ritmos e as estratégias de aprendizagem. Este busca a concepção dos processos de ensino/aprendizagem.

2 A Função Social do Ensino e a Concepção sobre os Processos de Aprendizagem: instrumentos de análise

Com base no ensino público da Espanha, Zabala afirma que, além das grandes declarações de princípios, sua função social “tem sido selecionar os melhores em relação à sua capacidade para seguir uma carreira universitária ou para obter qualquer outro título de prestígio reconhecido” (p. 27), subvalorando o valor informativo dos processos que os alunos/as seguem ao longo da escolarização.

Uma forma de determinar os objetivos da educação é analisar as capacidades que se pretende desenvolver nos alunos. Contudo, existem diferentes formas de classificar as capacidades do ser humano. Zabala utiliza a classificação proposta por Coll – capacidades cognitivas ou intelectuais, motoras, de equilíbrio e autonomia pessoal (afetivas), de relação interpessoal e de inserção e atuação social. Mas quais os tipos de capacidade que o sistema educativo deve levar em conta?

Diretamente relacionados aos objetivos da educação estão os conteúdos de aprendizagem. Coll (1986) os agrupa em conteúdos conceituais – fatos, conceitos e princípios – procedimentais – procedimentos, técnicas e métodos – ou atitudinais – valores, atitudes e normas. Classificação que corresponde, respectivamente, às perguntas: “O que se deve saber?”, “O que se deve saber fazer?” e “Como se deve ser?”. Assim, no ensino que propõe a formação integral a presença dos diferentes tipos de conteúdo estará equilibrada; por outro lado, um ensino que defende a função propedêutica e universitária priorizará os conceituais.

Quanto ao segundo referencial de análise – a concepção dos processos da aprendizagem – Zabala afirma que não é possível ensinar nada sem partir de uma ideia de como as aprendizagens se produzem. As aprendizagens dependem das características singulares de cada um dos aprendizes. Daí decorre que um enfoque pedagógico deve observar a atenção à diversidade dos alunos como eixo estruturador. Assim, o critério para estabelecer o nível de aprendizagem serão as capacidades e os conhecimentos prévios de cada aluno/a. Esta proposição marcará também a forma de ensinar.

Zabala defende a concepção construtivista como aquela que permite compreender a complexidade dos processos de ensino/aprendizagem. Para esta concepção “o ensino tem que ajudar a estabelecer tantos vínculos essenciais e não-arbitrários entre os novos conteúdos e os conhecimentos prévios quanto permita a situação” (p. 38). Na concepção construtivista, o papel ativo e protagonista do aluno não se contrapõe à necessidade de um papel também ativo do educador. A natureza da intervenção pedagógica estabelece os parâmetros em que pode se mover a atividade mental do aluno, passando por momentos sucessivos de equilíbrio, desequilíbrio e reequilíbrio. Nesse processo intervêm, junto à capacidade cognitiva, fatores vinculados às capacidades de equilíbrio pessoal, de relação interpessoal e de inserção social.

Após expor, em condições gerais, o processo de aprendizagem segundo a concepção construtivista, o autor passa a expor sobre a aprendizagem dos conteúdos conforme sua tipologia.

Os conteúdos factuais englobam o conhecimento de fatos, situações, dados, fenômenos concretos e singulares. São conhecimentos indispensáveis para a compreensão da maioria das informações e problemas que surgem na vida cotidiana e profissional. Considera-se que o aluno/a aprendeu um conteúdo factual quando é capaz de reproduzi-lo, portanto, a compreensão não é necessária. Diz-se que o aluno/a aprendeu quando é capaz de recordar e expressar de maneira exata o original. Quando se referem a acontecimentos pede-se uma lembrança o mais fiel possível. Se já se tem uma boa compreensão dos conceitos a que se referem os dados, fatos ou acontecimentos, a atividade fundamental para sua aprendizagem é a cópia. Este caráter reprodutivo comporta exercícios de repetição verbal, listas e agrupadas segundo ideias significativas, relações com esquemas e representações gráficas, associações, etc. Para fazer estes exercícios de caráter rotineiro é imprescindível uma atitude ou predisposição favorável.

Os conteúdos conceituais abrangem os conceitos e princípios. Os conceitos se referem ao conjunto de fatos, objetos ou símbolos que têm características comuns, e os princípios se referem às mudanças que se produzem num fato, objeto ou situação em relação a outros fatos, objetos ou situações e que, normalmente, descrevem relações de causa-efeito ou de correlação. Considera-se que o aluno/a aprendeu quando este é capaz não apenas repetir sua definição, mas também utilizá-la para a interpretação, compreensão ou exposição de um fenômeno ou situação; quando é capaz de situar os fatos, objetos ou situações concretas naquele conceito que os inclui.

Um conteúdo procedimental é um conjunto de ações coordenadas dirigidas para a realização de um objetivo. São conteúdos procedimentais: ler, desenhar, observar, calcular, classificar, traduzir, recortado, saltar, inferir, espetar, etc. Em termos gerais aprendem-se os conteúdos procedimentais a partir de modelos especializados. A realização das ações que compõem o procedimento ou a estratégia é o ponto de partida. O segundo passo é que a exercitação múltipla – fazê-lo tantas vezes quantas forem necessárias – é o elemento imprescindível para o domínio competente do conteúdo. A reflexão sobre a própria atividade é o terceiro passo e permite que se tome consciência da atuação. O quarto e último passo é a aplicação em contextos diferenciados que se baseia no fato de que aquilo que se aprende será mais útil na medida em que se pode utilizá-lo em situações nem sempre previsíveis.

O termo conteúdo atitudinal engloba valores, atitudes e normas. Cada grupo apresentando uma natureza suficientemente diferenciada. Considera-se que o aluno adquiriu um valor quando este foi interiorizado e foram elaborados critérios para tomar posição frente àquilo que deve se considerar positivo ou negativo. Que aprendeu uma atitude quando pensa, sente e atua de uma forma mais ou menos constante frente ao objeto concreto para quem dirige esta atitude. E que aprendeu uma norma, considerando três graus: o primeiro quando se trata de uma simples aceitação; o segundo quando existe uma conformidade que implica certa reflexão sobre o que significa a norma; e o último grau quando interioriza a norma e aceita como regra básica de funcionamento da coletividade que a rege.

Concluindo, Zabala identifica e diferencia a concepção tradicional da concepção construtivista, a partir dos dois referenciais básicos para a análise da prática. Na concepção tradicional a sequência de ensino/aprendizagem deve ser a aula magistral, que corresponde aos objetivos de caráter cognitivo, aos conteúdos conceituais e à concepção da aprendizagem como um processo acumulativo através de propostas didáticas transmissoras e uniformizadoras. As relações interativas são de caráter diretivo: professor → aluno; os tipos de agrupamentos se circunscrevem às atividades de grande grupo. A distribuição do espaço reduz-se ao convencional. Quanto ao tempo, estabelece-se um módulo fixo para cada área com uma duração de uma hora. O caráter propedêutico do ensino faz com que a organização dos conteúdos respeite unicamente a lógica das matérias. O livro didático é o melhor meio para resumir os conhecimentos e, finalmente, a avaliação tem um caráter sancionador centrado exclusivamente nos resultados.

A concepção construtivista apresenta uma proposta de compreensividade e de formação integral, impulsionando a observar todas as capacidades e os diferentes tipos de conteúdo. O ensino atende à diversidade dos alunos, portanto a forma de ensino não pode se limitar a um único modelo. Conforme Zabala (p. 51) “é preciso introduzir, em cada momento, as ações que se adaptem às novas necessidades informativas que surge constantemente”. O objetivo será a melhoria da prática. Nesta concepção, o conhecimento e o uso de alguns marcos teóricos levarão a uma verdadeira reflexão sobre a prática, fazendo com que a intervenção pedagógica seja o menos rotineira possível.

3 As Sequências Didáticas e as Sequências de Conteúdo

Neste capítulo o autor apresenta o estudo da primeira variável que incide sobre as práticas educativas: a sequência didática. Ele apresenta quatro unidades didáticas como exemplo e as analisa sob os aspectos do conteúdo, da aprendizagem, da atenção à diversidade e da sequência e tipologia dos conteúdos.
O autor conclui que nestas propostas de trabalho aparecem para os alunos diferentes oportunidades de aprender diversas coisas, e para os professores, uma diversidade de meios para captar os processos de construção que eles edificam, de possibilidades de neles incidir e avaliar. Que os diferentes conteúdos que os professores apresentam aos alunos exigem esforços de aprendizagem e ajudas específicas.

Refletir sobre o processo ensino/aprendizagem implica apreender o que está sendo proposto de maneira significativa. Discernir o que pode ser objeto de uma unidade didática, como conteúdo prioritário do que exige um trabalho mais continuado pode nos conduzir a estabelecer propostas mais fundamentadas, suscetíveis de ajudar mais os alunos e a nós mesmos. As diferentes propostas didáticas analisadas têm diferentes potencialidades quanto à organização do ensino. Portanto, “mais do que nos movermos pelo apoio acrítico a um outro modo de organizar o ensino devemos dispor de critérios que nos permitem considerar o que é mais conveniente num dado momento para determinados objetivos a partir da convicção de que nem tudo tem o mesmo valor, nem vale para satisfazer as mesmas finalidade. Utilizar esses critérios para analisar nossa prática e, se convém, para reorientá-la” (p.86).

4 As Relações Interativas em Sala de Aula: o papel dos professores e dos alunos

Para Zabala (p. 89) as relações de que se estabelecem entre os professores, os alunos e os conteúdos de aprendizagem constituem a chave de todo o ensino e definem os diferentes papéis dos professores e dos alunos.
A concepção tradicional atribui ao professor o papel de transmissor de conhecimentos e controlador dos resultados obtidos. Ao aluno cabe interiorizar o conhecimento que lhe é apresentado. A aprendizagem consiste na reprodução da informação. Esta maneira de entender a aprendizagem configura uma determinada forma que relacionar-se em classe.

Na concepção construtivista ensinar envolve estabelecer uma série de relações que devem conduzir à elaboração, por parte do aprendiz, de representações pessoais sobre o conteúdo. Trata-se de um ensino adaptativo, isto é, um ensino com capacidade para se adaptar às diversas necessidades das pessoas que o protagonizam. Portanto, os professores podem assumir desde uma posição de intermediário entre o aluno e a cultura, a atenção para a diversidade dos alunos e de situações à posição de desafiar, dirigir, propor, comparar. Tudo isso sugere uma interação direta entre alunos e professores, favorecendo a possibilidade de observar e de intervir de forma diferenciada e contingente nas necessidades dos alunos/as.

Do conjunto de relações necessárias para facilitar a aprendizagem se deduz uma série de funções dos professores, que Zabala (p. 92-104) caracteriza da seguinte maneira:
a) Planejar a atuação docente de uma maneira suficientemente flexível para permitir adaptação às necessidades dos alunos em todo o processo de ensino/aprendizagem. Por um lado, uma proposta de intervenção suficientemente elaborada; e por outro, com uma aplicação extremamente plástica e livre de rigidez, mas que nunca pode ser o resultado da improvisação. b) Contar com as contribuições e os conhecimentos dos alunos, tanto no início das atividades como durante sua realização.

c) Ajudá-los a encontrar sentido no que estão fazendo para que conheçam o que têm que fazer, sintam que podem fazê-lo e que é interessante fazê-lo.
d) Estabelecer metas ao alcance dos alunos para que possam ser superadas com o esforço e a ajuda necessários.
e) Oferecer ajudas adequadas, no processo de construção do aluno, para os progressos que experimenta e para enfrentar os obstáculos com os quais se depara.
f) Promover atividade mental auto-estruturante que permita estabelecer o máximo de relações com novo conteúdo, atribuindo-lhe significado no maior grau possível e fomentando os processos de meta-cognição que lhe permitam assegurar o controle pessoal sobre os próprios conhecimentos e processos durante a aprendizagem.
g) Estabelecer um ambiente e determinadas relações presididos pelo respeito mútuo e pelo sentimento de confiança, que promovam a auto-estima e o autoconceito.
h) Promover canais de comunicação que regulem os processos de negociação, participação e construção.
i) Potencializar progressivamente a autonomia dos alunos na definição de objetivos, no planejamento das ações que os conduzirão aos objetivos e em sua realização e controle, possibilitando que aprendam a aprender.
j) Avaliar os alunos conforme suas capacidades e seus esforços, levando em conta o ponto pessoal de partida e o processo através do qual adquirem conhecimentos e incentivando a auto-avaliação das competências como meio para favorecer as estratégias de controle e regulação da própria atividade.
Concluindo, Zabala afirma que os princípios da concepção construtivista do ensino e da aprendizagem escolar proporcionam alguns parâmetros que permitem orientar a ação didática e que, de maneira específica ajuda a caracterizar as interações educativas que estrutura a vida de uma classe, estabelecendo as bases de um ensino que possa ajudar os alunos a se formarem como pessoas no contexto da instituição escolar.

5 A Organização Social da Classe

Neste capítulo Zabala analisa a organização social da classe. As diversas formas de agrupamento dos alunos são úteis para diversos objetivos e para o trabalho de diferentes conteúdos. Historicamente a forma mais habitual de preparar as pessoas mais jovens para sua integração na coletividade eram os processos individuais. Atualmente são diversas as formas de agrupamento dos alunos e de organização das atividades às quais o professor pode recorrer.
A primeira configuração considerada pelo autor é o grupo/escola em que toda escola tem uma forma de estrutura social determinada. As características desta organização grupal são determinadas pela organização e pela estrutura de gestão da escola e pelas atividades que toda escola realiza. O grupos/classe fixos é a maneira convencional de organizar os grupos de alunos nas escolas. Além de sua facilidade organizativa, oferece aos alunos um grupo de colegas estável, favorecendo as relações interpessoais e a segurança efetiva. A terceira configuração, os grupos/classes móveis ou flexíveis são agrupamentos em que os componentes do grupo/classe são diferentes conforme as atividades, áreas ou matérias. As vantagens são, por um lado, a capacidade de ampliar a resposta à diversidade de interesses e competências dos alunos e, por outro, que em cada grupo existe uma homogeneidade que favorece a tarefa dos professores. Na organização da classe como grande grupo todo o grupo faz o mesmo ao mesmo tempo. É uma forma de organização apropriada para o ensino de fatos; no caso dos conceitos e princípios aparecem muitos problemas. Para os conteúdos procedimentais é impossível atender a diversidade; no caso dos conteúdos atitudinais o grande grupo é especialmente adequado para a assembléia, mas é insuficiente. A organização da classe em equipes fixas consiste em distribuir os alunos em grupos de 5 a 8 componentes, durante um período de tempo. As equipes fixas oferecem numerosas oportunidades para trabalhar conteúdos atitudinais. A sexta configuração é a organização da classe em equipes móveis ou flexíveis. Implica o conjunto de dois ou mais alunos com a finalidade de desenvolver uma tarefa determinada. São adequadas para o trabalho de conteúdos procedimentais. Também será apropriada para o trabalho dos conteúdos atitudinais no âmbito das relações interpessoais. O trabalho individual é especialmente útil para memorização de fatos, para o profundamente da memorização posterior de conceitos e, especialmente, para a maioria dos conteúdos procedimentais. Uma forma de trabalho individual especialmente útil é o denominado por Freinet de “contrato de trabalho”. Nos “contratos de trabalho” cada aluno estabelece um acordo com o professor sobre as atividades que deve realizar durante um período de tempo determinado. Essa forma trabalho é interessante só para aqueles conteúdos que permitem estabelecer uma sequência mais ou menos ordenada, ou seja, alguns conteúdos factuais e muitos conteúdos procedimentais.

Concluindo: a forma de agrupar os alunos não é uma decisão técnica prévia ou independente do que se quer ensinar e de que aluno se quer formar; os trabalhos em grupo não excluem o trabalho e o esforço individuais; os contratos de trabalho podem constituir-se num instrumento eficaz para articulara um trabalho personalizado interessante e pelo qual o aluno sinta responsável; o papel formativo do grupo/escola condiciona o que pode se fazer nos diferentes níveis da escola, educativamente falando, ao mesmo tempo que constitui um bom indicador da coerência entre as intenções formativas e os meios para alcançá-las.

Quanto à distribuição do espaço: na estrutura física das escolas, os espaços de que dispõe e como são utilizados corresponde a uma ideia muito clara do que deve ser o ensino. Parece lógica que a distribuição atual das escolas continue a ser um conjunto de salas de aula com um conjunto de cadeiras e mesas enfileiradas e alinhadas de frente para o quadro-negro e para a mesa do professor. Trata-se de uma disposição espacial criada em função do protagonista da educação, o professor.

A utilização do espaço começa a ser problematizada quando o protagonismo do ensino se desloca do professor para o aluno. Criar um clima e um ambiente de convivência que favoreçam as aprendizagens se converte numa necessidade da aprendizagem e num objetivo do ensino. Ao mesmo tempo, as características dos conteúdos a serem trabalhados determinam novas necessidades espaciais. Para a aplicação dos conteúdos procedimentais torna-se necessário revisar o tratamento do espaço já que é necessária uma atenção às diferenças. Quanto aos conteúdos atitudinais, excetuando-se o papel da assembleia e das necessidades de espaço dessa atividade, sua relação com a variável espaço está associada à série de manifestações que constituem a maneira de entender os valores por parte da escola.

Quanto à distribuição do tempo: o tempo teve, e ainda tem, um papel decisivo na configuração das propostas metodológicas. Muitas das boas intenções podem fracassar se o tempo não for considerado como uma autêntica variável nas mãos dos professores.
A estruturação horária em períodos rígidos é o resultado lógico de uma escola fundamentalmente transmissora. A ampliação dos conteúdos educativos e, sobretudo, uma atuação consequente com a maneira como se produzem as aprendizagens leva os professores a reconsiderar que estes modelos inflexíveis. No entanto, é evidente que o ritmo da escola, de toda uma coletividade, não pode se deixar levar pela aparente improvisação. O planejamento torna-se necessário para que se estabeleça um horário que pode variar conforme as atividades previstas no transcurso de uma semana.

6 A Organização dos Conteúdos

As relações e a forma de vincular os diferentes conteúdos de aprendizagem que formam as unidades didáticas é o que se denomina organização de conteúdos. Existem duas proposições acerca das formas de organizá-los: uma baseada nas disciplinas ou matérias; e a outra, oferecida pelos métodos globalizados, onde os conteúdos das unidades didáticas passam de uma matéria para outra sem perder a continuidade.

A diferença básica entre os dois modelos está no fato de que para os métodos globalizados as disciplinas não são a finalidade básica do ensino, senão que tem a função de proporcionar os meios ou instrumentos que deve favorecer a realização dos objetivos educacionais; o referencial organizador fundamental é o aluno e suas necessidades educativas. No caso dos modelos disciplinares a prioridade básica são as matérias e sua aprendizagem.
Tomando as disciplinas como organizadoras dos conteúdos têm-se, na escola, as diversas formas de relação e colaboração entre as diferentes disciplinas que foram consideradas matéria de estudo possibilitando estabelecer três graus de relações disciplinares:

1) Multidisciplinaridade: é a mais tradicional. Os conteúdos escolares são apresentados por matérias independentes umas das outras.
2) Interdisciplinaridade: é a interação entre duas ou mais disciplinas que pode ir desde a simples comunicação de ideias até a integração recíproca dos conceitos fundamentais, da teoria do conhecimento, da metodologia e dos dados da pesquisa.
3) Transdisciplinaridade: supõe uma integração global dentro de um sistema totalizador. Este sistema favorece uma unidade interpretativa, com objetivo de constituir uma ciência que explique a realidade sem parcelamento. Nesta concepção pode se situar o papel das áreas na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental, onde uma aproximação global de caráter psicopedagógico determina certas relações de conteúdos com pretensões integradoras.

Quanto aos métodos globalizados, sua perspectiva se centra exclusivamente no aluno e suas necessidades educacionais. Os conteúdos que são trabalhados procedem de diferentes disciplinas, apesar de que o nexo que há entre elas não segue nenhuma lógica disciplinar. Esse método nasce a partir do termo sincretismo introduzido por Claparède e, posteriormente, Decroly com termo globalismo.

Existem vários métodos que podem ser considerados globalizados, dentre eles quatro, por sua vigência atual, são analisados no livro: os centros de interesse de Decroly, o sistema de projetos de kilpatrick, o estudo do meio do MCE e os projetos de trabalho globais. O autor os analisa indicando seus pontos de partida, suas sequências de ensino/aprendizagem e suas justificativas. Zabala conclui que, embora todos priorizem o aluno e o como se aprende, o aspecto que enfatizam na função social é diferente. No centro de interesse a função social consiste em formar cidadãos preparados para conhecer e interagir com o meio; o método de projetos de Kilpatrick considera que sua finalidade é a preparação para a vida de pessoas solidárias que sabem fazer; para o método de estudo do meio a formação de cidadãos democráticos e com espírito científico; e, finalmente, os projetos de trabalho globais entendem que o objetivo é a formação de cidadãos e cidadãs capazes de aprender a aprender. Contudo, apesar das diferenças, o objetivo básico desses métodos consiste em conhecer a realidade e saber se desenvolver nela.

Concluindo, o autor afirma que inclinar-se por um enfoque globalizador como instrumento de ajuda para a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos não supõe a rejeição das disciplinas e dos conteúdos escolares. Pelo contrário, implica atribuir-lhes seu verdadeiro e fundamental lugar no ensino, que vai além dos limites estreitos do conhecimento enciclopédico, para alcançar sua característica de um instrumento de análise, compreensão e participação social. Esta característica é que os tornam suscetíveis de contribuir de forma valiosa para o crescimento pessoal, uma vez que fazem parte da bagagem que determina o que somos, o que sabemos e o que sabemos fazer.

7 Os Materiais Curriculares e os outros Recursos Didáticos

Os materiais curriculares são todos aqueles instrumentos que proporcionam ao educador referências e critérios para tomar decisões, tanto no planejamento como na intervenção direta no processo de ensino/aprendizagem e de sua avaliação. Por suas características eles podem ser classificados conforme o âmbito de intervenção a que se referem, conforme sua intencionalidade ou função, conforme os conteúdos que desenvolvem e conforme o tipo de suporte que utiliza.
Na sequência o autor analisa o uso dos materiais didáticos conforme a tipologia dos conteúdos, o suporte dos diferentes recursos – sua utilização, vantagens e inconvenientes, elabora propostas de materiais curriculares para a escola e indica alguns critérios para análise e seleção dos materiais, quais sejam: detectar os objetivos educativos subjacente a um determinado material; verificar que conteúdos são trabalhados; verificar a sequência de atividades propostas para cada um dos conteúdos; analisar cada uma das sequência de atividades propostas para comprovar se cumprem os requisitos da aprendizagem significativa; e estabelecer o grau de adaptação ao contexto em que serão utilizados.
A conclusão do autor: de nenhum modo os materiais curriculares podem substituir a atividade construtiva do professor, nem a dos alunos, na aquisição das aprendizagens. Mas é um recurso importantíssimo que, se bem utilizado, não apenas potencializa o processo como oferece ideias, propostas e sugestões que enriquecem o trabalho profissional.

8 A Avaliação

Porque avaliar, como avaliar, quem são os sujeitos e quais são os objetos da avaliação são analisados nesse último capítulo. A avaliação é o processo-chave de todo o processo de ensinar e aprender, sua função se encontra estreitamente ligada à função que se atribui a todo o processo. Nesse sentido suas possibilidades e potencialidades se vinculam para a forma que as próprias situações didáticas adotam. Quando as avaliações são homogeneizadoras, duras, fechadas, rotineiras, elas têm pouca margem para se transformar num fato habitual e cotidiano. Contrariamente, as propostas abertas favorecem a participação dos alunos e a possibilidade de observar, por parte dos professores; oferece a oportunidade para acompanhar todo o processo e, portanto, assegurar a sua idoneidade.
A presença de opções claras sobre a função do ensino e da maneira de entender os processos de ensino/aprendizagem e que dão um sentido ou outro à avaliação, soma-se à necessidade de objetivos com finalidades específicas que atuam como referencial concreto da atividade avaliadora, que a faça menos arbitrária e mais justa. Ao mesmo tempo exige uma atitude observadora e indagadora por parte dos professores, que os impulsionem para analisar o que acontece e tomar decisões para reorientar a situação quando for necessário. E os professores também devem aprender a confiar nas possibilidades dos alunos para auto-avaliar-se no processo. O melhor caminho para fazer é para ajudar os alunos a alcançar os critérios que lhes permitam auto-avaliar-se combinando e estabelecendo o papel que essa atividade tem na aprendizagem e nas decisões de avaliação. Finalizando tanto a avaliação quanto a auto-avaliação não pode ser um episódio ou um engano, mas algo que deve ser planejado seriamente.

Maria Angélica Cardoso
Pedagoga, especialista em Formação Docente pela UNIDERP, mestre em Educação pela UFMS, doutoranda em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. cardosoangelica@terra.com.br

Resumo do livro: A AUTONOMIA DOS PROFESSORES José Contreras

A AUTONOMIA DOS PROFESSORES

José Contreras

1- Introdução

A Autonomia dos professores, bem como a própria ideia de seu profissionalismo, são temas recorrentes nos últimos tempos nos discursos pedagógicos. No entanto, sua profusão está se dando, sobretudo, na forma de slogans, que como tal de desgastam e seus significados se esvaziam com o uso frequente. Pode-se dizer que, por serem slogans, são utilizados em excesso para provocar uma atração emocional, sem esclarecer nunca o significado que se lhes quer atribuir.
Há casos em que este sentido de slogan, de palavra com aura, é muito mais evidente. Tomemos o exemplo da qualidade da educação. Atualmente, todo programa, toda política, toda pesquisa, toda reivindicação educativa é feita em nome da qualidade, porém citá-la sem mais nem menos é, às vezes, um recurso para não defini-la. Remeter à expressão “qualidade da educação”, em vez de explicitar seus diversos conteúdos e significados para diferentes pessoas, e em diferentes posições ideológicas, é uma forma de pressionar para um consenso sem permitir discussão. Evidentemente esse é um recurso que pode ser utilizado por quem tem poder para dispor e difundir slogan como forma de legitimar seu ponto de vista sem discuti-lo.
Em relação à autonomia dos professores, estamos diante de um caso parecido. Uma vez que a expressão passou a fazer parte dos slogans pedagógicos, já não podemos evitá-la. Porém, usá-la como slogan é apoiar os que têm a capacidade de exercer o controle discursivo, os que se valem da retórica para criar consenso evitando a discussão.
Deste modo, temos que aproveitar o processo de esclarecimento para recuperar e repensar aqueles significados que supõem uma defesa expressa de certas opções; e que, mais do que nos limitarmos a repeti-las, possamos descobrir seu valor educativo e social.

Esta é a pretensão deste livro. Esclarecer o significado da autonomia de professores, tentando diferenciar os diversos sentidos que lhe podem ser atribuídos, bem como avançar na compreensão dos problemas educativos e políticos que encerra. Deve-se compreender, no entanto, que apesar da pretensão de esclarecer os diferentes significados da autonomia, isto não quer dizer que o propósito seja puramente conceitual. Contreras pretende captar a significação no contexto de diferentes concepções educativas e sobre o papel daqueles que ensinam.

O esclarecimento da autonomia é por sua vez a compreensão das formas ou dos efeitos políticos dos diferentes modos de conceber os docentes, bem como as atribuições da sociedade na qual esses profissionais atuam. Ao falar da autonomia do professor, estamos falando também de sua relação com a sociedade e, por conseguinte, do papel da mesma com respeito à educação.

O presente texto está estruturado em três partes:
  • na Parte I, analisa-se o problema do profissionalismo no ensino, situando essa questão no debate sobre a proletarização do professor, as diferentes formas de entender o que significa ser profissional e as ambiguidades e contradições ocultas na aspiração à profissionalidade.
  • na Parte II, o autor discute as três tradições diferentes com respeito à profissionalidade de professores: a que entende os professores como técnicos, a que defende o ensino como uma profissão de caráter reflexivo e a que adota para o professor o papel do intelectual crítico.
A Parte III é dedicada a estabelecer uma visão global do que se deve entender por autonomia de professores, mostrando o equilíbrio necessário requerido entre diferentes necessidades e condições de realização da prática docente, e propondo as condições pessoais, institucionais e sociopolíticas que uma autonomia profissional deveria ter que não signifique nem individualismo, nem corporativismo, tampouco submissão burocrática ou intelectual.

Segundo o autor, este não é um livro no qual se façam propostas concretas, se entendermos por isso planos de ação.Ao contrário, o livro possui, sim, um sentido muito prático, se aceitarmos que a forma com que pensamos tem muito a ver com a forma com que encaramos a realidade e decidimos nela nos inserir. A Autonomia não é isolamento e não é possível sem o apoio, a relação, o intercâmbio.

Nem sempre as sugestões provêm das leituras dos rascunhos. Provêm também, e neste caso especialmente, do clima intelectual e profissional no qual se criam oportunidades para discussões interessantes ou para análise de nós mesmos como docentes e de nossas circunstâncias profissionais.

CAPÍTULO 1: A AUTONOMIA PERDIDA: A PROLETARIZAÇÃO DOS PROFESSORES

Uma das ideias mais difundidas na atualidade com respeito aos professores e, ao mesmo tempo, uma das mais polêmicas é a sua condição de profissional. Uma das razões que torna esse assunto problemático é que a palavra “profissional”, e suas derivações, embora em princípio pareçam apenas referir-se às características e qualidades da prática docentes, não são sequer expressões neutras. O tema do profissionalismo – como todos os temas em educação – está longe de ser ingênuo ou desprovido de interesse e agendas mais ou menos escusas.

O ensino, enquanto um ofício, não pode ser definido apenas de modo descritivo, ou seja, pelo que encontramos na prática real dos professores em sala de aula, já que a docência defini-se também por suas aspirações e não só por sua materialidade. Por isso, se quisermos entender as características e qualidades do ofício de ensinar, temos de discutir tudo o que se diz sobre ele ou o que dele se espera. E também o que é e o que não deveria ser; o que se propõe, mas que se torna, ao menos, discutível.

Esta é a razão pela qual, se quisermos abordar o tema da autonomia profissional, precisamos discutir os aspectos contraditórios e ambíguos que encerra. A aspiração do autor com essa discussão é, portanto, conseguir manter o confronto ideológico, com o objetivo de resgatar uma posição comprometida com determinados valores para a prática docente.

O tema da proletarização dos professores nos oferece uma perspectiva adequada para essa preocupação. A tese básica da proletarização de professores é que o trabalho docente sofreu uma subtração progressiva de uma série de qualidades que conduziram os professores à perda de controle e sentido sobre o próprio trabalho, ou seja, à perda da autonomia.

1. O debate sobre a proletarização dos professores

Embora não se possa falar em unanimidade entre os autores que defendem a teoria da proletarização de professores, a tese básica dessa posição é a consideração de que os docentes, enquanto categoria, sofreram ou estão sofrendo uma transformação, tanto nas características de suas condições de trabalho como nas tarefas que realizam as quais os aproxima cada vez mais das condições e interesses da classe operária. Autores como Apple (1987; 1989b; Apple e Jungck, 1990), Lawn e Ozga (1988; Ozga, 1988), ou Densmore (1987) são representantes de tal perspectiva.

Este tipo de análise, segundo Jimenez Jaén (1988), tem como base teórica a análise marxista das condições de trabalho do modo de produção capitalista e o desenvolvimento e aplicação dessas propostas realizadas por Braverman (1974). Com o objetivo de garantir o controle sobre o processo produtivo, este era subdividido em processos cada vez mais simples, de maneira que os operários eram especializados em aspectos cada vez mais reduzidos da cadeia produtiva, perdendo deste modo a perspectiva do conjunto, bem como as habilidades e destrezas que anteriormente necessitavam para o seu trabalho. O produto dessa atomização significava, por conseguinte, a perda da qualificação do operário. Agora, o trabalhador passa a depender inteiramente dos processos de racionalização e controle de gestão administrativa da empresa e do conhecimento científico e tecnológico dos experts. Deste modo, os conceitos-chave que explicam esse fenômeno de racionalização do trabalho são:
  • A separação entre concepção e execução no processo produtivo;
  • A desqualificação;
  • A perda de controle sobre o seu próprio trabalho.
Esta lógica racionalizadora transcendeu o âmbito da empresa, como âmbito privado e de produção, enquanto processo de acumulação de capital para invadir a esfera do Estado.

No caso do ensino, a atenção a essas necessidades realizou-se historicamente mediante a introdução do mesmo espírito de “gestão científica”, tanto no que se fere ao conteúdo da prática educativa como ao modo de organização e controle do trabalho do professor. Assim, o currículo começou a conceber também uma espécie de processo de produção, organizado sob os mesmos parâmetros de decomposição em elementos mínimos de realização – os objetivos -, os quais corresponderiam a uma descrição das atividades particulares e específicas da vida adulta para as quais haveria que se preparar (Bobbit, 1918).

A determinação cada vez mais detalhada do currículo a ser adotado nas escolas, a extensão de todo tipo de técnicas e diagnóstico e avaliação dos alunos, a transformação dos processos de ensino em microtécnicas dirigidas à consecução de aprendizagens concretas perfeitamente estipuladas e definidas de antemão, as técnicas de modificação de comportamento, dirigidas fundamentalmente ao controle disciplinar dos alunos, toda a tecnologia de determinação de objetivos operativos ou finais, projetos curriculares nos quais se estipula perfeitamente tudo o que deve fazer o professor passo a passo ou, em sua carência, os textos e manuais didáticos que enumeram i repertório de atividades que professores e alunos devem fazer etc. (Jimenez Jaen, 1988). Tudo isso reflete o espírito de racionalização tecnológica do ensino.

A degradação do trabalho, privado de suas capacidades intelectuais e de suas possibilidades de ser realizado como produto de decisões pensadas e discutidas coletivamente, regulamentado na enumeração de suas diferentes tarefas e conquistas a que se deve dar lugar, fez com que os professores fossem perdendo aquelas habilidades e capacidades e aqueles conhecimentos que tinham conquistado e acumulado “ao longo de dezenas de anos de duro trabalho” (Apple e Jungck, 1990:154).

2. Profissionalismo e proletarização

Um dos mecanismos que, segundo teóricos da proletarização, tem sido utilizado entre os professores como modo de resistência à racionalização de seu trabalho e à desqualificação, tem sido a reivindicação de seus status de profissionais (Densmore, 1987). Para Densmore, a pretensão dos docentes de serem reconhecidos como profissionais não reflete mais que uma aspiração para fugir de sua assimilação progressiva às classes trabalhadoras. Com efeito, a base social que se nutriu do trabalho dos professores foi evoluindo também à proporção que este se foi degradando.

Segundo Apple (1989b), não se pode explicar o surgimento do profissionalismo como defesa ideológica diante da desqualificação, sem entender a forma de evolução do sentido de responsabilidade entre os professores. Conforme aumenta o processo de controle, da tecnicidade e da intensificação, os professores e professoras tendem a interpretar esse incremento de responsabilidades técnicas como um aumento de suas competências profissionais.

A tese definida por Lawn e Ozga sobre este particular: “Entre os professores, o profissionalismo pode ser considerado uma expressão do serviço à comunidade, bem como em outros tipos de trabalho (...). Também se pode considerar uma força criada externamente que os une numa visão particular de seu trabalho (...). O profissionalismo é, em parte, uma tentativa social de construir uma “qualificação”; a autonomia era, em parte, a criação por parte dos professores de um espaço defensivo em torno da referida ‘qualificação’”. (Lawn e Ozga, 1988:213).

Em contrapartida, isso permitiria entender fenômenos segundo os quais, em algumas ocasiões, os professores se comprometem com as políticas de legitimação do Estado, por meio de seus sistemas educativos: “Muitos mestres se comprometerão com elas (as metas de políticas reformistas) acreditando que vale a pena alcançá-las, e investirão quantidades excepcionais de tempo necessárias, tratando de assumi-las com seriedade. Estes mestres explorarão a si mesmos trabalhando inclusive mais duramente, com baixa remuneração e em condições intensificadas, fazendo tudo para vencer as contraditórias pressões às quais estarão submetidos. Aos mesmo tempo, porém, a carga adicional de trabalho criará uma situação na qual será impossível alcançar plenamente essas metas” (Apples e Jungck, 1990:169).

3. A Proletarização em nosso contexto recente

Outro aspecto crítico que convém considerar com respeito à análise da profissão do professor afetada por um processo de proletarização é que a maioria dos estudos sobre essa questão provêm de uma realidade social e educacional muito diferente da nossa, a maioria dos estudos é realizada na Europa. Estão se perdendo muitas das habilidades e conhecimentos profissionais que possuíam e estão sendo afastados de funções para determinação do currículo que anteriormente lhes correspondiam.

O professor do ensino fundamental passa atualmente por sucessivas transformações que elevam sua categoria até transformá-lo em estudos universitários, enquanto que para o professor do ensino médio se institui também uma formação pedagógica ainda mínima. (Varela e Ortega, 1984).

O certo é que essa requalificação permite transformar e ocultar a forma de controle, ao justificar-se por seu valor técnico para a eficácia, “neutralizando” o conteúdo anterior puramente ideológico. Desta maneira, embora pudéssemos falar de um processo de regulação, burocracia e tecnicidade cada vez mais detalhadas, isto não ocorre em um processo de anterior domínio e independência profissional.

O modo de assegurar o controle e a dedicação dos professores, como vimos, reside em obter sua colaboração nos processos de racionalização, os novos mecanismos de racionalização que a reforma pôs em prática conseguirão eliminar as possíveis resistências dos professores à medida que consigam sua aceitação.

4. O controle ideológico e controle técnico no ensino
Em primeiro lugar, embora a análise dos processos de proletarização costume fazer referência fundamentalmente à perda das competências técnicas e a seu desprendimento das funções de concepção, com as quais se atribui significação ao trabalho, o certo é que no âmbito educativo há um aspecto mais importante que o da desqualificação técnica e que é mais de natureza ideológica. No contexto educativo, a proletarização, se ela significa alguma coisa, é sobretudo a perda de um sentido ético implícito no trabalho do professor.

Há processos de controle ideológico sobre os professores que podem ficar encobertos por um aumento de sofisticação técnica e pela aparência de uma maior qualificação profissional. Um determinado resgate de habilidades e decisões profissionais pode se transformar em uma forma mais sutil de controle ideológico. Se a posição clássica da proletarização era a perda da autonomia ocasionada pela redução de professores a meros executores de decisões externas, a recuperação de determinado controle pode não ser mais que a passagem da simples submissão a diretrizes alheias à “autogestão do controle externo”.

A RETÓRICA DO PROFISSIONALISMO E SUAS AMBIGUIDADES

A discussão sobre o profissionalismo dos professores está atravessada de ponta a ponta pelas ambiguidades que a própria denominação “profissional” acarreta, bem como pelos interesses no uso desse termo. Algo desse assunto pode ser observado ao analisar o modo conflitivo e contraditório com que o termo é usado quando os professores tratam de fugir da proletarização. Passa a ser ambíguo porque sua fuga é tanto uma resistência à perda de qualidade em sua atividades de docência, como uma resistência a perder – ou não obter – um prestígio, um status ou uma remuneração que se identifique com a de outros profissionais.

1. Imagens e características

Em geral, parece que a reivindicação de profissionalismo ou o sentimento de “profissionais” por parte dos professores obedece a uma série de características que normalmente eles expressam como se pertencessem por direito próprio a seu trabalho. É o caso, por exemplo, da reivindicação de condições de trabalho como a remuneração, horas de trabalho, facilidade para atualização como profissionais e reconhecimento de sua formação permanente , tudo isso em conformidade com a importância da função social que cumprem. Mas é também um pedido de reconhecimento “como profissionais”, isto é, como dignos de respeito e como especialistas em seu trabalho e, portanto, a rejeição à ingerência de “estranhos” em suas decisões e atuações. Isso significa, ao menos em certo sentido, “autonomia profissional”, mas também dignificação e reconhecimento social de seu trabalho, sobretudo em épocas em que se sentem questionados pelos pais nos conselhos escolares.

São muitos os quadros elaborados tentando expor quais são esses traços determinantes de uma profissão. Para Skopp, são eles:
  • Um saber sistemático e global (o saber profissional)
  • Poder sobre o cliente (disposição deste de acatar suas decisões)
  • Atitude de serviço diante de seus clientes
  • Autonomia ou controle profissional independente
  • Prestígio social e reconhecimento legal e público de seu status
  • Subcultura profissional especial
Já Fernandez Enoita (1990), por sua vez, assinalou os seguintes traços:
  • Competência (ou qualificação num campo de conhecimentos)
  • Vocação (ou sentido de serviço a seus semelhantes)
  • Licença (ou exclusividade em seu campo de trabalho)
  • Independência (ou autonomia, tanto frente às organizações como frente a seus clientes
  • Auto-regulação (ou regulação e controle exercido pela própria categoria profissional).
Assim quando se compara os professores com essas características, a conclusão mais habitual que se chega é que a única denominação possível a ser atribuída é a de semiprofissionais.

2. O profissionalismo como ideologia

Estudos de Larson (1977) colocaram em evidência que as teorizações sobre os traços não são senão formalizações de supostos ideológicos que as próprias profissões sustentam, com o objetivo de manter a legitimidade de seu status e privilégios, e para manter sua diferenciação com respeito a outras ocupações.

No entanto, segundo Larson, esse suposto poder autônomo não corresponde à realidade e hoje menos do que nunca. A necessidade de depender do poder do Estado para a defesa de seus interesses e do capitalismo monopolista modificaram as condições de trabalho dos profissionais, tornando-se agora um especialista assalariado em uma grande organização empresarial ou burocrática.

Essa transformação fez com que o status tradicional de muitos profissionais não seja agora mais que o de trabalhadores assalariados e burocratizados.

Além disso, se o profissionalismo como ideologia se encontra ligado à capacidade de impor um conhecimento como exclusivo, despolitizando e tornando tecnocrática a atuação social, está longe de ficar claro que isso seja uma conquista social, esta é uma advertência que Popkewitz (1990) faz.

5. O controle sobre o conhecimento e as profissões do ensino.

A profissionalização encontrou seu processo mais forte de legitimação na posse do conhecimento cientifico. O profissionalismo, como assessoria de experts no planejamento e regulação escolar, transformava a administração política educativa em um problema meramente racional, que poderia ser resolvido mediante habilidades técnicas adquiridas pelos especialistas graças ao caráter científico de seu conhecimento. (Popkewitz, 1991: cap.3).

“A formação de professores existe e está historicamente ligada ao desenvolvimento institucional do ensino. Conforme o ensino evoluiu como forma social de preparar as crianças para a vida adulta, também se desenvolveu um grupo ocupacional especializado em elaborar o plano de sua vida diária. Este grupo desenvolveu algumas corporações especializadas em imagens, alegorias e rituais que explicam a ‘natureza’ do ensino e sua divisão do trabalho. A formação de professores pode ser entendida, em parte, como um mecanismo para fixar e legitimar as pautas ocupacionais de trabalho para os futuros professores” (Popkewitz, 1987:3).

O resultado é que os professores ocupam uma posição subordinada na comunidade discursiva da educação. Quem detém o status de profissional no ensino é, fundamentalmente, o grupo de acadêmicos e pesquisadores universitários, bem como o de especialistas com funções administrativas, de planejamento e de controle no sistema educacional.

4. As armadilhas do profissionalismo

Em nome da profissionalização, ou de atributos que lhe são associados, com o objetivo de garanti-la, ou ampliá-la, justificam-se transformações administrativas e trabalhistas para os docentes, exigindo-se sua colaboração. Evidentemente, não se pode defender a oposição a uma reforma se, como consequência da mesma, começarmos a ser reconhecidos como melhores profissionais ou, se nos negamos a fazê-la, estaremos abandonando nossas responsabilidades profissionais.

Smyth (1991a), por exemplo, explica a forma em que o profissionalismo dos professores está se redefinindo e utilizando, como fator de legitimação, as novas políticas de reforma, as quais se caracterizam por uma combinação entre as decisões centralizadas e pelas metas curriculares claramente definidas e fixadas pelo Estado, por um lado, e a participação local e a decisão colegiada nos centros escolares por outro.

Dessa perspectiva, a profissionalização atua como modo de garantir a colaboração sem discutir os limites de atuação. Isto é o que Hargreaves e Dave (1990) chamam de “colegização artificial”.

5. Autonomia no profissionalismo

A reivindicação de autonomia do profissionalismo parece mais uma defesa contra a intrusão. É previsível que essa reação contra a intervenção externa possa se sustentar com mais facilidade diante dos setores mais fracos da sociedade, do que frente às organizações ou aos poderes públicos; isto é, ante os receptores de seus serviços e não frente a seus empregadores (Fernandez Enguita, 1993; Gil, 1996). Nesse sentido, os movimentos de profissionalização podem obter mais êxito em preservar suas atuações da crítica e da participação social, do que na determinação do conteúdo ou das condições de seu trabalho nas instituições nas quais se integram.

A autonomia como não intromissão costuma ser, por um lado, uma descrição equivocada da função desempenhada pelo ensino, já que este se situa no terreno da transmissão de valores e saberes sancionados socialmente.

OS VALORES DA PROFISSIONALIZAÇÃO E A PROFISSIONALIDADE DOCENTE

1. A profissionalidade docente e as qualidades do trabalho educativo

Como afirmaram Lawn e Ozga (1988), ou Carlson (1987;1992), as exigências profissionais que os professores podem fazer não se diferenciam em muitas ocasiões das que podem ser feitas por outros trabalhadores. Pretender um maior controle sobre o próprio trabalho não é privativo dos trabalhadores da área de ensino,porém essa reivindicação não se reduz a um desejo de maior status.

A educação requer responsabilidade e não se pode ser responsável se não é capaz de decidir, seja por impedimentos legais ou por falta de capacidades intelectuais e morais. Autonomia, responsabilidade, capacitação são características tradicionalmente associadas a valores profissionais que deveriam ser indiscutíveis na profissão de docente. E a profissionalização pode ser, nessa perspectiva, uma forma de defender não só os direitos dos professores, mas da educação.

2. A obrigação moral

A primeira dimensão da profissionalidade docente deriva do fato de que o ensino supõe um compromisso de caráter moral para quem a realiza (Contreras, 1990:16e ss). Este compromisso ou obrigação moral confere à atividade de ensino um caráter que, como assinalou Sockett (1989:100), se situa acima de qualquer obrigação contratual que possa ser estabelecida na definição do emprego. É preciso atender o avanço na aprendizagem de seus alunos, enquanto que não se pode esquecer das necessidades e do reconhecimento do valor que, como pessoas , merece todo o alunado.

É inevitável o fato de que o trabalho de ensinar consista na relação direta e continuada com pessoas concretas sobre as quais se pretende exercer uma influência, com a bondade das pretensões e com os aspectos mais pessoais de evolução, os sentimentos e o cuidado e atenção que podem exigir como pessoas (Noddings, 1986).

O aspecto moral do ensino está muito ligado à dimensão emocional presente na relação educativa. Na verdade, sentir-se compromissado ou “obrigado” moralmente reflete este aspecto emocional na vivência das vinculações com o que se considera valioso.

O professor ou professora , inevitavelmente, se defronta com sua própria decisão sobre a prática que realiza, porque ao ser ele ou ela quem pessoalmente se projeta em sua relação com alunos e alunas, tratando de gerar uma influência, deve decidir ou assumir o grau de identificação ou de compromisso com as práticas educativas que desenvolve, os níveis de transformação da realidade que enfrenta etc.

3. O compromisso com a comunidade

A educação não é um problema da vida privada dos professores, mas uma ocupação socialmente encomendada e responsabilizada publicamente.
É também necessário entender que a responsabilidade pública envolve a comunidade na participação das decisões sobre o ensino. Se a educação for entendida como um assunto que não se reduz apenas às salas de aula, mas que tem uma clara dimensão social e política, a profissionalidade pode significar uma análise e uma forma de intervir nos problemas sociopolíticos que competem ao trabalho de ensinar.

Todos os campos de compromisso social da prática docente supõem para os professores, em muitas ocasiões, um conflito com as definições institucionais da escola, a regulação de suas funções e as inércias tradições assentadas.

Já não estamos falando do professor ou da professora, isolados na sua sala de aula, como forma de definir o lugar da sua competência profissional, mas da ação coletiva e organizada e da intervenção naqueles lugares que restringem o reconhecimento das consequências sociais e da política do exercício profissional do ensino.

4. A competência profissional

A obrigação moral dos professores e o compromisso com a comunidade requerem uma competência profissional coerente com ambos. Temos que falar de competências profissionais complexas que combinam habilidades, princípios e consciência do sentido das consequências das práticas pedagógicas. Dificilmente, pode-se assumir uma obrigação moral ou um compromisso com o significado e as repercussões sociais do ensino se não se dispuser desta competência (Sockett, 1993: cap5).

É necessário destacar, de qualquer modo, que a atenção a competências profissionalizadoras que requerem um distanciamento dos contextos imediatos para entender os fatores de determinação da prática educativa há de ser compensada e simultaneamente sustentada com a atenção e cuidado às pessoas concretas que se deduz da obrigação moral.

Da mesma maneira, podemos dizer que a competência profissional é o que capacita o professor para assumir responsabilidades, mas ele ou ela dificilmente pode desenvolver sua competência sem exercitá-la, isto é, se carecer de autonomia profissional, porque, como afirmou Gimeno: “(...) um professor não pode se tornar competente naquelas facetas sobre as quais não tem ou não pode tomar decisões e elaborar juízos arrazoados que justifiquem suas intervenções” (Gimeno, 1989:15).

MODELOS DE PROFESSORES: EM BUSCA DA AUTONOMIA PROFISSIONAL DO DOCENTE

A Autonomia Ilusória: o professor como profissional técnico

Trata-se mais precisamente de aprofundar o entendimento da autonomia como chave para compreensão de um problema específico do trabalho educativo, característica que se mostrará essencial na possibilidade de desenvolvimento das qualidades essenciais da prática educativa.

1. A prática profissional do ensino a partir da racionalidade técnica

Como afirmou Schön (1983;1992), o modelo dominante que tradicionalmente existiu sobre como atuam os profissionais na prática, e sobre a relação entre pesquisa, conhecimento e prática profissional, foi o da racionalidade técnica. A ideia básica deste modelo é que a prática profissional consiste na solução instrumental de problemas mediante a aplicação de um conhecimento teórico e técnico, previamente disponível, que procede da pesquisa científica.
Segundo essa perspectiva, Schein identificou no conhecimento profissional três componentes essenciais:
  • Ciência ou disciplina básica, sobre o qual a prática se apóia e a partir do qual se desenvolve.
  • Ciência aplicada ou de engenharia, a partir do qual deriva a maioria dos procedimentos cotidianos de diagnóstico e de solução de problemas.
  • Habilidade e atitude, que se relaciona com a atuação concreta a serviço do cliente, utilizando para isso os dois componentes anteriores da ciência básica e aplicada.

“A racionalidade técnica impõe, então, pela própria natureza da produção do conhecimento, uma relação de subordinação dos níveis mais aplicados e próximos da prática aos níveis mais abstratos de produção do conhecimento, ao mesmo tempo em que se preparam as condições para o isolamento dos profissionais e seu confronto gremial” (Pérez Gómez, 1991 b: 375).

2. Domínio Técnico e dependência profissional

No campo da educação, a falta de aplicação técnica de grande parte do conhecimento pedagógico, juntamente com a natureza ambígua e, por vezes, conflituosa de seus fins, levou a que se considere o ensino como uma profissão somente em um sentido muito fraco e limitado. O reconhecimento que, como profissionais, os professores possuem, sob essa concepção, relaciona-se com o domínio técnico demonstrado na solução de problemas, ou seja, no conhecimento dos procedimentos adequados de ensino e em sua aplicação inteligente.

O conhecimento pedagógico relevante, a partir da mentalidade da racionalidade técnica, é sobretudo aquele que estabelece quais os meios mais eficientes para levar a cabo alguma finalidade predeterminada, ou seja, aquele que se pode apresentar como técnica ou método de ensino (Holiday, 1990:29).

3. A irredutibilidade técnica do ensino

O professor, como profissional técnico, compreende que sua ação consiste na aplicação de decisões técnicas. Ao reconhecer o problema diante do qual se encontra, ao ter claramente definidos os resultados que deve alcançar, ou quando tiver decidido qual é a dificuldade de aprendizagem de tal aluno ou grupo, seleciona entre o repertório disponível o tratamento que melhor se adapta à situação e o aplica. A prática docente é, em grande medida, um enfrentamento de situações problemáticas nas quais conflui uma multidão de fatores e em que não se pode apreciar com clareza um problema que coincida com as categorias de situações estabelecidas de situações para as quais dispomos de tratamento.

Aqueles professores que entendem que seu trabalho consiste na aplicação de habilidades para alcançar determinadas aprendizagens, tendem a resistir à análise de circunstâncias que ultrapassa a forma pela qual já compreenderam seu trabalho. Por outro lado, os que se sensibilizam diante dessas questões, terão de aceitar o contexto mais amplo nas origens e consequências de sua prática educativa como parte de seu compromisso profissional, embora percam necessariamente a segurança que lhes dava a redução de sua competência profissional, e se abrirão à complexidade, à instabilidade e à incerteza.

4. A autonomia ilusória: a incapacitação política

Eliot (1991b) denominou de “expert infalível” aquele tipo de professor que demonstra uma preocupação pelo rigor maior do que pela relevância. Segundo este autor, o expert infalível não está preocupado em desenvolver uma visão global da situação na qual atua, mas, sim, em função das categorias extraídas do conhecimento especializado que possui.

Ainda segundo Elliott, dada a lacuna existente na epistemologia positivista, da prática entre o domínio do conhecimento técnico e seu uso nas situações reais, o “expert infalível” aplica esse conhecimento de forma intuitiva, baseando-se no saber do senso comum, que se manipula na cultura profissional.

Um dos efeitos evidentes da concepção dos professores como “experts técnicos” é o que se refere às finalidades do ensino. Em termos da prática de ensino, tanto a fixação externa de objetivos educacionais como sua redução a resultados, não resolvem os problemas de obrigação moral, os quais os professores necessariamente enfrentarão.

O DOCENTE COMO PROFISSIONAL REFLEXIVO

O que o modelo de racionalidade técnica - como concepção da atuação profissional - revela é a sua incapacidade para resolver e tratar tudo o que é imprevisível, tudo o que não pode ser interpretado como um processo de decisão e atuação regulado segundo um sistema de raciocínio infalível a partir de um conjunto de premissas.

Por isso, é necessário resgatar a base reflexiva da atuação profissional, com o objetivo de entender a forma pela qual realmente se abordam situações problemáticas da prática.

A partir da descrição que Schön realizou, observando a forma com que diferentes profissionais realizam realmente seu trabalho, foi se caracterizando essa perspectiva, apresentada a seguir.

1. Schön e os profissionais reflexivos

A ideia de profissional reflexivo desenvolvida por Schön (1983;1992) trata justamente de dar conta da forma pela qual os profissionais enfrentam aquelas situações que não se resolvem por meio de repertórios técnicos; aquelas atividades que, como o ensino, se caracterizam por atuar sobre situações que são incertas, instáveis, singulares e nas quais há um conflito de valor.

Essa ideia de reflexão na ação habitual, na vida cotidiana, adota determinadas características próprias na prática profissional. Conforme sua prática fica estável e repetitiva, seu conhecimento na prática se torna mais tácito e espontâneo. É esse conhecimento profissional o que lhe permite confiar em sua especialização.

Os professores podem se encontrar em processos imediatos de reflexão na ação no caso de terem de responder a uma alteração imprevista no ritmo da classe. Este processo de reflexão na ação transforma o profissional, segundo Schön, em um “pesquisador no contexto da prática” (1983:69).

A prática constitui-se, desse modo, um processo que se abre não só para a resolução de problemas de acordo com determinados fins, mas à reflexão sobre quais devem ser os fins, qual o seu significado concreto em situações complexas e conflituosas, “que problemas valem a pena ser resolvidos e que papel desempenhar neles” (ibid.:130).

“Um profissional que reflete na ação tende a questionar a definição de sua tarefa, as teorias na ação das quais ela parte e as medidas de cumprimento pelas quais é controlado. E, ao questionar essas coisas, também questiona elementos da estrutura do conhecimento organizacional na qual estão inseridas suas funções (...). A reflexão na ação tende a fazer emergir não só os pressupostos e as técnicas mas também os valores e propósitos presentes no conhecimento organizacional”. (Schön, 1983:338-9)

2. Stenhouse e o professor como pesquisador

A concepção do ensino como prática reflexiva, e dos professores como profissionais reflexivos, transformaram-se em denominações habituais na atual literatura pedagógica, de tal maneira que, como veremos mais adiante, chegou-se inclusive, a obscurecer algumas vezes o sentido que Schön quis dar a esses termos.

Para Stenhouse, o ensino é uma arte, visto que significa a expressão de certos valores e de determinada busca que se realiza na própria prática do ensino. Por isso, pensa que os docentes são como artistas, que melhoram sua arte experimentando-a e examinando-a criticamente. E compara a busca e experimentação de um professor com a que realiza, por exemplo, um músico tentando extrair o que há de valioso em uma partitura, tentando experimentá-la, pesquisando possibilidades, examinando efeitos, até encontrar o que para ele expressa seu autêntico sentido musical. (Stenhouse, 1985).

Tanto Stenhouse com Schön expõem sua posição em relação aos professores ou aos profissionais como resistência e oposição aos modelos de racionalidade técnica.

Uma das ideias básicas no pensamento de Stenhouse foi a da singularidade das situações educativas. Não é possível saber o que é, ou o que será, uma situação de ensino até que se realize. Desta forma, é impossível dispor de um conhecimento que nos proporcione os métodos que devam ser seguidos no ensino, porque isso seria como aceitar que há ações cujo significado se estabelece à margem dos que o atribuem, ou que é possível depender de generalizações sobre métodos, quando o importante na educação é atender as circunstâncias que cada caso apresenta e não pretender a uniformização dos processos educativos, ou dos jovens.

Como a prática docente supõe o ensino de algo, a criação de determinadas situações de aprendizagem, a busca de certas qualidades na aprendizagem dos alunos etc., é o currículo que reflete o conteúdo do ensino. O currículo necessita ser sempre interpretado, adaptado e, inclusive, (re) criado por meio do ensino que o professor realiza. Como expressa J. Mac Donald: “O ensino não é a aplicação do currículo, mas a contínua invenção, reinvenção e improvisação do currículo.

O professor, como pesquisador de sua própria prática, transforma-a em objeto de indagação dirigida à melhoria de suas qualidades educativas. O currículo, enquanto expressão de sua prática e das qualidades pretendidas, é o elemento que se reconstrói na indagação, da mesma maneira que também se reconstrói a própria ação.

A ideia do professor como pesquisador está ligada, portanto, à necessidade dos professores de pesquisar e experimentar sobre sua prática enquanto expressão de determinados ideais educativos.

3. O fundamento aristotélico: a racionalidade prática

Tanto o trabalho de Schön como o de Stenhouse, e seus seguidores, podem ser assumidos perfeitamente sob a perspectiva da racionalidade prática aristotélica.

Para Aristóteles, há uma diferença clara entre o que se chama de atividades técnicas e as atividades práticas. De acordo com essa ética, é evidente que a educação é um tipo de atividade prática se for entendida como dirigida não à consecução de produtos, mas à realização de qualidades intrínsecas ao próprio processo educativo.

4. Autonomia das decisões profissionais e responsabilidade social

Ser sensível às características do caso, e atuar em relação ao mais apropriado para o mesmo, é algo que requer processos reflexivos, os quais não podem manipular elementos que não estiverem assimilados por seus protagonistas, seja a partir de sua própria experiência ou da proposição de uma tradição. Se a deliberação é sobre a forma de realizar o bem, nenhum professor poderá evitar agir em relação à sua própria concepção do que é o bem na educação, independentemente das restrições ou das ordens às quais estejam submetidos.

A conclusão que se extrai é a de que a educação não pode ser determinada a partir de fora; entenda-se a partir disto a ideia de que a prática educativa não pode ser a realização de valores educativos formulados por agentes externos à própria ação. São os próprios profissionais do ensino que, em ultima instância, decidem a forma com que planejam suas aulas, por meio das quais as tentativas de influência externa são transformadas em práticas que nem sempre têm muito a ver com a essência das mudanças pretendidas.

“Como poderemos nós, professores, conhecer o que se deve fazer: Uma resposta possível é que teremos de receber instruções em forma de currículo e de especificações sobre os métodos pedagógicos. Pessoalmente, rejeito essa ideia. A educação é um aprendizado no contexto de uma busca da verdade. A verdade não pode estar definida pelo Estado, nem sequer por meio de processos democráticos: um controle estrito do currículo e dos métodos pedagógicos nas escolas é equivalente ao controle totalitário da arte. Alcançar a verdade por meio da educação é um assunto de juízo profissional em cada situação concreta, e os professores de educação ou os administradores não podem nos indicar o que devemos fazer. As recomendações vão variar em cada caso. Não necessitaremos de um médico se o que este nos indicar for um tratamento prescrito pelo Estado ou sugerido por seu professor, sem sequer nos ter examinado e diagnosticado previamente” (Stenhouse, 1985:44-5).

CONTRADIÇÕES E CONTRARIEDADES: DO PROFISSIONAL REFLEXIVO AO INTELECTUAL CRÍTICO

Não vivemos em uma sociedade simplesmente pluralista, mas estratificada e dividida em grupos com status desigual, poder e acesso a recursos materiais e culturais (Warnke, 1992:150). A prática profissional não é só a realização de pretensões educativas. Nós, docentes, em um mundo não só plural, mas também desigual e injusto, nos encontramos submetidos a pressões e vivemos contradições e contrariedades das quais nem sempre é fácil sair, ou nem sequer captar com lucidez.

É essa fraqueza ou insuficiência de argumentação do profissional reflexivo que conduz à busca de uma concepção que, sem renunciar ao que anuncia a pretensão reflexiva (uma prática consciente e deliberativa, guiada pela busca da coerência pessoal entre as atuações e convicções), dê conta dessas preocupações em relação a qual deveria ser a orientação para a reflexão do professor.

1. Apropriação generalizada do termo reflexivo

Desde que se publicou a obra de Schön (1983), a ideia do docente como profissional reflexivo passou a ser moeda corrente na literatura pedagógica. Vários autores tentaram fazer uma revisão sobre o enfoque reflexivo. De um lado, não se sabe, em muitas ocasiões, o que querem dizer os autores com o termo reflexão, fora do uso comum utilizado pela maioria dos professores.

Zeichner (1993), por exemplo, em uma tentativa de esclarecer o campo, identificou na literatura pedagógica cinco variedades da prática reflexiva:
  • Versão acadêmica: que acentua a reflexão sobre as disciplinas, e a representação e tradução do conhecimento disciplinar em matérias, para promover a compreensão dos estudantes;
  • Versão de eficiência social: que ressalta a aplicação minuciosa de estratégias particulares de ensino que vêm sugeridas por um “conhecimento básico” externo à prática e que se deduz da pesquisa sobre o ensino;
  • Versão evolutiva que prioriza um ensino sensível ao pensamento, aos interesses e às pautas do desenvolvimento evolutivo dos estudantes, bem como da própria evolução do professor como docente e como pessoa;
  • Versão de reconstrução social que acentua a reflexão sobre os contextos institucionais, sociais e políticos, bem como a valorização das atuações em sala de aula em relação à sua capacidade para contribuir para uma igualdade maior, justiça e condições humanas, tanto no ensino como na sociedade;
  • Versão genética, na qual se defende a reflexão em geral, sem especificar grande coisa em relação aos propósitos desejados ou ao conteúdo da reflexão

2. Crítica à concepção reflexiva de Schön

Liston e Zeichner (1991) apontaram os limites da teoria de Schön. Para eles, este é um enfoque reducionista e estreito, que limita, por conseguinte, o sentido do que deveria ser uma prática reflexiva.

“A prática reflexiva competente pressupõe uma situação institucional que leve a uma orientação reflexiva e a uma definição de papéis, que valorize a reflexão e a ação coletivas orientadas para alterar não só as interações dentro da sala de aula e na escola, mas também entre a escola e a comunidade imediata e entre a escola e as estruturas sociais mais amplas” (Liston e Zeichner, 1991: 81).

A crítica de Liston e Zeichner se dirige à falta de especificidade de Schön em relação ao fato de que os professores reflitam sobre sua linguagem, seu sistema de valores, de compreensão sobre a forma com que definem seu papel, pois é necessário propor a forma com que isto se constitui como parte importante do processo de reflexão na ação.

3. Os limites do professor como artista reflexivo

Da mesma forma que no caso de Schön, há outros autores que criticaram as limitações do pensamente de Stenhouse em relação a sua concepção do professor como pesquisador.

A ideia do artista reflete o fato de que uma pessoa se auto-analista, com seus próprios recursos e sua própria compreensão, para desenvolver as qualidades artísticas de sua obra, dentro de uma tradição estética.

Quando se define a ideia do professor como artista ou como pesquisador, bem como a do profissional reflexivo, estamos diante do mesmo problema: define-se uma configuração das relações entre determinadas pretensões e as práticas profissionais, em um contexto de atuação, mas não se está revelando nenhum conteúdo para essa reflexão.

4. As práticas institucionais dos professores e as limitações da reflexão

Não poderemos compreender as possibilidades que a reflexão tem em si mesma para detectar os interesses de dominação da prática escolar, e para transcender os limites que esta impõe à emancipação, se não tivermos em conta a forma com que professores e professoras, no contexto da instituição escolar, constroem seu papel. O ensino, enquanto prática social, não é definido ex novo pelos docentes, mas estes se incorporam a uma instituição, a qual já responde a certas pretensões, uma história, rotinas e estilos estabelecidos.

Contudo, a lógica do controle tecnocrático entra em contradição com a forma pela qual as instituições expressam o sentido da missão encomendada. Enquanto que por um lado, se formulam as finalidades educativas como formas de preparação para uma vida adulta com capacidade crítica em uma sociedade plural, por outro lado a docência e a vida na escola se estruturam negando essas pretensões.

5. A crítica teórica como superadora das limitações da reflexão

Muitos professores, em virtude das características da instituição educacional e da forma pela qual nela se socializam, tendem a limitar seu universo de ação e de reflexão à sala de aula. O excesso de responsabilidade e a insegurança em que vivem os levam a aceitar as concepções regulamentares e tecnocráticas, que lhes oferecem uma segurança aparente, porém, ao mesmo tempo, a regulamentação burocrática e externa lhes impede de atender simultaneamente às necessidades de seus alunos e às exigências de controle. Em sua insatisfação, os sentimentos de responsabilidade conduzem ao isolamento e ao deslocamento da culpa para os contextos mais imediatos: os alunos, os colegas, o funcionamento da escola.

Segundo expressa Giroux: “Os professores podem não ser conscientes da natureza de sua própria alienação, ou podem não reconhecer o problema como tal (...). Esta é precisamente a ideia da teoria crítica: ajudar os professores a desenvolver uma apreciação crítica da situação na qual se encontram”.

6. Giroux e o professor como intelectual crítico

Foi Giroux quem melhor desenvolveu essa ideia dos professores como intelectuais. Baseando-se nas ideias de Gramsci sobre o papel dos intelectuais na produção e reprodução da vida social, para Giroux, o sentido dos professores compreendidos como intelectuais reflete todo um programa de compreensão e análise do que, para ele, devem ser os professores. Por um lado, permite entender o trabalho do professor como tarefa intelectual, em oposição às concepções puramente técnicas ou instrumentais.

“O ensino para a transformação social significa educar os estudantes para assumir riscos e para lutar no interior das contínuas relações de poder, tornando-os capazes de alterar as bases sobre as quais se vive a vida. Atuar como intelectuais transformadores significa ajudar os estudantes a adquirir um conhecimento crítico sobre as estruturas sociais básicas, tais como a economia, o Estado, o mundo do trabalho e a cultura de massas, de modo que estas instituições possam se abrir a um potencial de transformação. Uma transformação, neste caso, dirigida à progressiva humanização da ordem social” (Giroux, 1991:90).

7. A reflexão crítica

Facilitar a ligação de uma concepção libertadora da prática de ensino com um processo de emancipação dos próprios professores para sua configuração como intelectuais críticos requer, na opinião de Smyth (1991b; 1986; 1987) e Kemmis (1985; 1987), a constituição de processos de colaboração com os professores para favorecer sua reflexão crítica.

A reflexão crítica não se pode ser concebida como um processo de pensamento sem orientação. Pelo contrário, ela tem um propósito muito claro de “definir-se” diante dos problemas e atuar consequentemente, considerando-os como situações que estão além de nossas próprias intenções e atuações pessoais, para incluir sua análise como problemas que têm uma origem social e histórica. Para Kemmis (1987), refletir criticamente significa colocar-se no contexto de uma ação, na historiada situação, participar de uma atividade social e ter uma determinada postura diante dos problemas. Significa explorar a natureza social e histórica, tanto de nossa relação como atores nas práticas institucionalizadas da educação, quanto da relação entre nosso pensamento e ação educativos. Colmo essa maneira de atuar tem consequências públicas, a reflexão crítica induz a conceber como uma atividade também pública, exigindo, por conseguinte, a organização das pessoas envolvidas e dirigindo-se à elaboração de processos sistemáticos de crítica que permitiriam a reformulação de sua teoria e prática social e de suas condições de trabalho.

Com o objetivo de poder articular a forma pela qual a prática reflexiva se relaciona com um compromisso crítico, Kemmis (1985) chamou a atenção para os elementos que configuram como processo. São os seguintes:
  1. A reflexão não está biológica ou psicologicamente determinada, nem é tampouco “pensamento puro”; expressa uma orientação à ação e tem a ver com a relação entre pensamento e ação nas situações reais históricas nas quais nos encontramos.
  2. A reflexão não é o trabalho individualista da mente, como se fosse um mecanismo ou mera especulação; pressupõe e prefigura relações sociais.
  3. A reflexão não está livre de valores nem é neutra; expressa e serve a particulares interesses humanos, sociais, culturais e políticos.
  4. A reflexão não é indiferente ou passiva em relação à ordem social, nem se reduz a discutir os valores sobre os quais exista acordo social; ativamente, reproduz ou transforma as práticas ideológicas que estão na base da ordem social.
  5. A reflexão não é um processo mecânico nem tampouco um exercício puramente criativo na construção de novas ideias; é uma prática que expressa nosso poder para reconstruir a vida social pela forma de participação por meio da convivência, da tomada de decisões ou da ação social (Kemmis, 1985:149).

8. O fundamento habermasiano da reflexão crítica

Todas estas discussões sobre a reflexão crítica encontram seu fundamento na Teoria Crítica e, mais especificamente, nas ideias de Habermas. O projeto teórico de Habermas está baseado na ideias da emancipação, no aprofundamento de seu significado, na fundamentação de sua razão de ser e no papel do conhecimento nela contido. A partir de sua teoria dos interesses constitutivos do conhecimento, Habermas (1982; 1984) defende que as concepções práticas, ou seja, aquelas que supõem uma ação comunicativa dirigida ao entendimento e ao acordo (e sobre as quais se sustenta o modelo profissional reflexivo), não são possíveis em uma sociedade em que os modos dominantes de produção, o imperativo da mentalidade tecnológica, aplicada aos sistemas de relações humanas, e dos interesses dos grupos que detêm o poder, forçaram certas relações que estão enraizadas em uma comunicação distorcida, ou em sistemas diretamente coercitivos, que dão lugar a consciências deformadas pela ideologia.

Nas relações que Habermas estabelece em todo este plano de conhecimento dirigido à ação política, a figura do teórico (e de sua teoria) fica esboçada de forma problemática, já que reconhece por um lado um momento de privilégio, simultâneo à incapacidade de justificar-se conclusivamente.

“A reivindicada superioridade do ilustrador sobre aquele que ainda deve se ilustrar é teoricamente inevitável, mas é, ao mesmo tempo, fictícia e necessita de autocorreção: em um processo de ilustração há somente participantes” (Habermas, 1987:48).

9. Diversos entendimentos sobre crítica

A importância deste fato para nós é que, quando se trata de estimular professores a buscarem processos de emancipação guiados pela reflexão crítica, à maneira do que propunham Kemmis ou Smyth, não é nem um pouco evidente que estejamos diante de uma caso semelhante aos dos grupos organizados por interesses comuns e por intenção política. Em todo o caso, o que se propunha era mais o desejo de que a reflexão crítica conduzisse à necessidade de uma ação transformadora.

10. Autonomia ou emancipação

O que o modelo dos professores como intelectuais críticos sugere é que tanto a compreensão dos fatores sociais e institucionais que condicionam a prática educativa, como a emancipação das formas de dominação que afetam nosso pensamento e nossa ação não são processos espontâneos que se produzem “naturalmente” pelo mero fato de participarem de experiências que se pretendem educativas. Do esforço também para descobrir as formas pelas quais os valores ideológicos dominantes, as práticas culturais e as formas pelas quais os valores ideológicos dominantes, as possibilidades de ação do professor, mas também as próprias perspectivas de análise e compreensão do ensino, de suas finalidades educativas e de sua função social. Igualmente o intelectual crítico está preocupado com a captação e potencialização dos aspectos de sua prática profissional, que conservam uma possibilidade de ação educativamente valiosa, enquanto busca a transformação ou a recondução daqueles aspectos que não a possuem, sejam eles pessoais, organizacionais ou sociais.

AUTONOMIA E SEU CONTEXTO
A CHAVE DA AUTONOMIA DOS PROFESSORES

A autonomia profissional de acordo com os três modelos de professores:



MODELOS DE PROFESSORES


Especialista Técnico Profissional Reflexivo Intelectual Crítico
DIMENSÕES
DA PROFISSIONALIDADE
DO PROFESSOR
Obrigação Moral Rejeição de problemas normativos. Os fins e valores passam a ser resultados estáveis e bem definidos, os quais se espera alcançar O ensino deve guiar-se pelos valores educativos pessoalmente assumidos. Definem as qualidades morais da relação e da experiência educativas Ensino dirigido à emancipação individual e social, guiada pelos valores de racionalidade, justiça e satisfação.
Compromisso com a comunidade Despolitização da prática. Aceitação das metas do sistema e preocupação pela eficácia e eficiência em seu êxito Negociação e equilíbrio entre os diferentes interesses sociais, interpretando seu valor e mediando política e prática entre eles. Defesa de valores para o bem comum (justiça, igualdade e outros).Participação em movimentos sociais pela democratização.
Competência profissional Domínio técnico dos métodos para alcançar os resultados previstos Pesquisa/reflexão sobre a prática. Deliberação na incerteza acerca da forma moral ou educativa correta de agir em cada caso Auto-reflexão sobre as distorções ideológicas e os condicionantes institucionais. Desenvolvimento da análise e da crítica social. Participação na ação política transformadora.
CONCEPÇÃO DA AUTONOMIA PROFISSIONAL Autonomia como status ou como atributo. Autoridade unilateral do especialista. Não ingerência. Autonomia ilusória: dependência de diretrizes técnicas, insensibilidade para os dilemas, incapacidade de resposta criativa diante da incerteza Autonomia como responsabilidade moral individual, considerando os diferentes pontos de vista. Equilíbrio entre a independência de juízo e a responsabilidade social. Capacidade para resolver as situações-problema para a realização prática das pretensões educativas. Autonomia como emancipação: liberação profissional e social das opressões. Superação das distorções ideológicas. Consciência crítica. Autonomia como processo coletivo (configuração discursiva de uma vontade comum), dirigido à transformação das condições institucionais e sociais de ensino

AS NOVAS POLÍTICAS EDUCACIONAIS E A AUTONOMIA DE PROFESSORES.

Não é possível falar da autonomia de professores sem fazer referência ao contexto trabalhista, institucional e social em que os professores realizam seu trabalho. As condições reais de desenvolvimento de sua tarefa, bem como o clima ideológico que a envolve, são fatores fundamentais que a apóiam ou a entorpecem. E sem condições adequadas, o discurso sobre a autonomia pode cumprir apenas duas funções: ou é uma mensagem de resistência, de denúncia de carências para um trabalho digno e com possibilidades de ser realmente educativo, ou é uma armadilha para os professores, que só pretende fazê-los crer falsamente que possuem condições adequadas de trabalho e que, portanto, o problema é só deles.

1. A autonomia necessária: diagnóstico de uma mudança de perspectiva sobre os professores

A comunicação ou disseminação das inovações se transformam em um fator-chave: como conseguir que o receptor, os professores, as entenda, as aceite e as leve a cabo. Como vencer suas resistências.

Grande parte da teoria e da pesquisa sobre a inovação educativa moveu-se sob os pressupostos anteriores, de maneira que se entendeu que a formulação de uma inovação, que emanava dos técnicos e especialistas, externos às salas de aula e às escolas, significavam um elemento em si positivo.

Tudo isso não fizeram senão aumentar a perspectiva dominante sobre os professores, os quais não só tinham uma imagem de passividade, como de realizadores de atuações que outros planejavam, e que os inovadores e reformadores se moveram durante muito tempo no desejo de que fossem mais obedientes do que autônomos. A autonomia, mais do que uma pretensão para os professores, poderia chegar a ser um estorvo na realização fiel das reformas esboçadas. As modificações que os professores poderiam introduzir nas inovações planejadas significavam um fracasso, uma adulteração das mesmas, e era necessário contê-las. Planejar bem uma inovação era reduzir ao máximo a possibilidade de que fosse “deformada” pelos professores.

As experiências de desenvolvimento do currículo baseadas nos professores.
Como alternativas às concepções tecnológicas do currículo, nas quais o docente ficava reduzido ao papel do técnico aplicador de planos alheios, surgiram experiências em que os professores eram protagonistas do desenvolvimento curricular. Nesses casos, não se pretendia a fidelidade dos professores ao programa curricular, mas o contrário, apelava-se para sua capacidade de experimentação das propostas de ensino, para que eles mesmos testassem suas possibilidades educativas.

Mudança de perspectiva na compreensão dos professores.
Um dos fatores fundamentais nesta mudança de mentalidade foi a aceitação, por parte da comunidade de pesquisadores, de que os professores não poderiam ser compreendidos o suficiente em termos de suas condutas ou como simples aplicadores de diretrizes. Com o advento do behaviorismo e o assentamento dos modelos cognitivos surgiu uma nova linha de pesquisa que entendia em uma nova fonte de compreensão dos professores como mediadores cognitivos das ideias e propostas educativas, bem como pensadores dinâmicos de sua própria realidade de ensino (Clark e Peterson, 1989).

A escola como unidade de ação e mudança. Após sucessivas experiências de inovação e diversas tentativas de transformação curricular, foi-se descobrindo também que era insuficiente pensar no ensino e em sua melhoria com professores isolados em suas salas de aula. No entanto, o reconhecimento do papel mediador das escolas não se pode realizar sem levar em conta que são as pessoas concretas que as habitam, ou seja, aqueles que vivem, interpretam, transmitem e transformam os costumes, relações e crenças que constituem a cultura da escola.

A crise das ideias de mudança como solução definitiva de problemas. Uma das razões para a perda de fé nos clássicos modelos de inovação encontra-se no fato de que cada vez mais se desconfia da aspiração para encontrar a solução definitiva dos problemas que afligem a educação ou sua organização institucional. Os problemas e suas circunstâncias mudam no tempo e no espaço, transformando-se e singularizando-se, e as soluções devem ser aceitas como aproximações provisórias que se tentam adequar como tentativa de circunstâncias concretas de casa caso ou escola em particular. A realidade é sempre mutante e as organizações educativas devem aprender a se adaptar e a encontrar suas próprias estratégias de ação. Isto supõe a transformação da própria noção de mudança escolar.

2. A descentralização administrativa das reformas

Um fenômeno bastante comum na maioria dos países ocidentais, na década de 1990, foi o surgimento de reformas educacionais que estão apresentando três âmbitos fundamentais de preocupação: o currículo, as escolas e os professores. Embora de forma bastante ambígua, quando não claramente contraditória, a descentralização e a autonomia estão sendo utilizadas como princípios nos quais se dizem baseadas as mudanças propostas: a descentralização do currículo associada à autonomia de escolas e professores.
Em termos de política educativa, poderíamos dizer que uma das coisas que o princípio de descentralização supôs foi o reconhecimento, no processo de planejamento curricular, deste fato. Razão pela qual se tende a pensar cada vez mais no currículo oficial como aquele documento que deve ser adaptado, desenvolvido ou concretizado nas circunstâncias particulares de ensino. Este princípio passou a fazer parte do discurso público e da retórica da administração em relação ao currículo, e que, não sendo tão novo na experiência dos professores, não justificou por si só as atuais tendências de descentralização curricular.
Especialistas e administradores insistem na importância de que as escolas se considerem unidades de autogestão, sensíveis a seu contexto, tratando de atender às suas demandas e em contínuo desenvolvimento profissional e institucional. Os professores tornarão sua a reforma se tomarem o currículo como seu e se comprometerem com sua escola, conferindo-lhe um caráter próprio e singular. A qualidade da educação depende da qualidade das escolas, e estas, por sua vez, dependem de que os professores se comprometam com elas, de que trabalhem em colaboração com seus colegas para sua permanente melhoria, atendendo às necessidades do contexto e respondendo às demandas.

Que cada escola assuma “autonomamente” a responsabilidade de seu próprio projeto educacional tem sua tradução na prática no assumir tal responsabilidade perante a “sociedade”, entendendo-se, neste caso, as famílias concretas que buscam as escolas concretas. A sociedade, particularizada nas famílias singulares com filhos em idade escolar, assume as responsabilidades “devolvidas” pelo Estado, adquirindo a obrigação de exigir das escolas uma educação de qualidade. A forma pela qual se entende esse princípio de participação das famílias é, sobretudo, incentivando e facilitando a escolha das escolas.

Dessa forma, a devolução de responsabilidades é entendida como entrega, aos atores concretos (as escolas específicas e as famílias envolvidas em cada uma delas), da responsabilidade dos efeitos de suas decisões isoladas. Efeitos que, entretanto, por vezes só podem ser entendidos em sua dimensão sociológica, cultural e política, e não só na dimensão particular em que se tomam estas decisões.

4. O que há por trás? As mudanças ideológicas de fundo

Até o momento, as razões dessas tendências reformistas, que podem ser observadas tanto na Espanha como internacionalmente, estão presentes, de um modo ou de outro, nos discursos públicos e na retórica das administrações. Entretanto, devemos compreender o fenômeno da descentralização atendendo às motivações profundas que animam esse tipo de tendência.

“O problema com a legitimidade do Estado parece se basear, ao menos em parte, em sua natureza supercentralizadora (real ou percebida), na distância entre a base e o sistema político, em seu caráter monopolista, sua incapacidade estrutural para atender as variações importantes dentro da sociedade e na qualidade amiúde impessoal, coercitiva e desumana de sua burocracia administrativa. Se esta avaliação for correta, então tudo o que pareça com um Estado menos centralizado e monopolista, mais atento às variações de necessidades internas, pode ser visto como fonte potencial de ampliação de legitimidade”. (Weiler, 1990:441-2).

O currículo descentralizado e a autonomia nas escolas podem ser, portanto, o lugar em que os conflitos se diluem ou se reduzem a casos particulares. As diferenças sociais da sociedade em geral são muito perceptíveis em cada escola em particular. Vistas individualmente, cada uma pode ser internamente mais homogênea, podendo concretizar o currículo de forma aparentemente menos conflituosa. Ou, ainda, as escolas em que se produzem conflitos sociais ou ideológicos podem ser menores em quantidade, ficando isoladas do resto do sistema.

É este o modelo que agora se afirma estar em crise. Tanto suas dificuldades internas como o ataque ideológico a que foi submetido foram assinalando aspectos controversos do mesmo e ocasionando mudanças ideológicas e políticas de longo alcance. Entre as múltiplas mudanças que vêm sendo produzidas, vamos destacar três delas:

(A) A crise fiscal do Estado: os Estados se transformaram em máquinas enormes, intrincadas e complexas, que geram um gasto muito grande, e, com isso, o Estado entrou em uma crise fiscal cada vez mais difícil de ser sustentada, o que está gerando uma discussão sobre o papel do Estado na cidadania.

b) A crise de motivação da sociedade: o modelo de Estado de bem-estar, ao atuar como provedor das necessidades sociais, o fez assumindo quais eram elas e como deveriam ser satisfeitas, dando alento ao consumo passivo da provisão nacional, minando a confiança dos cidadãos em dirigir suas próprias vidas e aumentando continuamente à burocracia, a vigilância, a imposição de ordens e o controle nacional (Keane, 1992:21).

c) A crise de motivação dos serviços públicos: a mesma apatia que se observava na sociedade em geral pode se apreciar também nos serviços públicos. Na medida em que estes são organismos planejados de forma centralizadora, burocraticamente complicados, dependentes de diferentes organismos, ao mesmo tempo centrais, periféricos e locais, perderam progressivamente coerência e capacidade de adaptação e de mudança.

5. A autonomia aparente

Se relacionarmos hoje as transformações ideológicas e políticas que vêm sendo produzidas ao papel do Estado, dos serviços públicos, da cidadania e da democracia, com as mudanças das reformas educacionais, poderemos entender de forma mais global a direção em que pode estar se encaminhando o sistema escolar. E, além das mudanças legislativas (onde se pode situar a maior vitória do neoliberalismo como ideologia), poderemos também analisar qual o tipo de mentalidade que parece estar se estendendo no mundo educacional.
Ou seja, se as escolas forem mais diferenciadas entre si, isto leva às escolas à competitividade em que o mercado de oferta e procura deve se ajustar. É evidente que essa discussão da competitividade e do ajuste entre a oferta e a demanda tem suas perversões.

Em primeiro lugar, os recursos econômicos e de influência, para saberem se mover dentro do sistema na busca da melhor escolha, devem levar em conta que as escolas são bens escassos ou justos no mercado; as “boas” escolas, seja elas o que forem, serão ainda mais escassas; poder optar por uma “boa” escola depende da capacidade do consumidor para isso.

Em segundo lugar, a competitividade como motivação da sociedade não é neutra. O critério a partir do qual se compete não é livremente escolhido pela sociedade, posto que venha decidido pela capacidade de rendimento em termos fixados pelo currículo oficial (Hatcher, 1994).

Conclusão:

O que tudo isso reflete é efetivamente um modelo de ajuste e demanda, mas não um modelo de diálogo social na definição da escolaridade. A escola começa a se movimentar para oferecer o que atrai a clientela. E a clientela se movimenta em função do que sente como competitivo no mercado social. Assim, enquanto a escola e usuários não se sentarem para discutir o que acreditam que deveria ser a prática educativa, ambos estarão fazendo movimentos de ajuste a partir de demandas e necessidades que eles próprios não controlam, porque não atuam enquanto grupo que toma decisões deliberativas e compartilhadas, senão como agentes isolados guiados por interesses individuais, não sociais.

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