TÍTULO: ISSO É RACISMO.
DEDICATÓRIA
Dedicamos esta peça teatral à memória do poeta paraense Bruno de Menezes, Mestre na Arte e no humanismo preto, popular; a todas as vítimas do racismo e aos que lutam para o fim desta doença moral.
PRÓLOGO
Mestre de Cerimônia - Há muitas estórias a contar. Muitas delas acontecem todo dia, a todo instante, perto de nós, mas passam despercebidas. Bem escondida em meio à realidade, existe uma doença do espírito. Vamos descobrir qual é.
CENA I
MÚSICA NEGRO DRAMA, DOS RACIONAIS MC’S
Entra um rapaz negro, vestido com terno e gravata, sapatos lustrosos. Movimenta-se com sutileza e firmemente. Olha a platéia de modo sério e sereno. Em seguida, vê um mendigo branco e loiro, que estende o chapéu desgastado em sua direção.
Ele lhe dá esmola, e o pedinte, então, agradece.
Pedinte – Valeu, Doutor!
O rapaz faz leve cumprimento e sai.
Entra uma Senhora negra, trajada com vestido longo, andando distraída pela rua, quando um menino branco passa correndo e rouba sua bolsa. Ela grita.
Senhora Negra – Branquinho! Pivete!
Chega o Policial.
Policial – O que foi, Madame?
SN – Ora, eu fui roubada.
P – Como era o marginal?
SN – Um moleque branquelo...
Sai a Senhora. O Policial começa a procurar o delinqüente. De repente, pergunta à platéia.
P – Ei! Vocês viram um indivíduo com pinta de marginal por aqui? Aquele meliante roubou na cara-dura uma senhora de respeito, na saída do banco.
Aparece novamente o rapaz negro.
RN – Olá, Sargento, muito trabalho?
P – Só um figura que tá fazendo terror aqui no pedaço. Mas, eu acerto ele. Não viu ninguém suspeito por aí?
RN – Olha, para falar a verdade, eu avistei um rapaz não muito confiável. Ele foi por ali.
P – Valeu, Doutor.
RN – Disponha. Boa noite.
Entra um Menino Branco que até então não havia aparecido em cena.
P – Ei! Tu aí, malandro!
MB – Ta falando comigo, autoridade?
P – Tem outro malandro na área?
MB – Se quer saber, eu estudo, valeu, aqui em Outeiro mesmo.
P – Vai passar a lição na cela, brancão.
MB – Ei! Qual é? Não fiz nada, meu!
P – Cala a boca, seu branco!
INTERVALO
Entra o Mestre de cerimônia, meio negro, meio branco, trazendo pelo braço um senhor branco.
MC – Este cidadão é bastante conhecido, está muito presente em nosso dia-a-dia. Apresento-lhes o Cidadão branco. Detalhe, ele não é racista.
CB - Racismo não existe mais, isso foi só na época da escravidão. É isso aí, nesse país todos são tratados como iguais, tá na constituição. O preto já pode fazer coisa de branco, não é mais como antes.
MC – Este, senhoras e senhores, é o cidadão negro, personalidade antes alegre. Mas, que anda agora falando sério.
CN – A escravidão não nasceu com ninguém, foi criada pelo preconceito e pela maldade do homem. Negro não é sinônimo de escravo. A escravidão é filha do racismo, e não o contrário, e ele permanece até hoje.
CONTINUA MÚSICA NEGRO DRAMA, DOS RACIONAIS MC’S
CENA II
Entra um rapaz branco. Numa mesa, uma secretária negra, de cabelos étnicos.
Secretária – Diga.
RB – Eu vim pelo anúncio...
SN– (Interrompendo-o) – A vaga já foi preenchida!
RB – Mas, eu cheguei às seis da manhã, eu fui o primeiro a chegar...
SN – Só que não tem mais vaga.
RB - E esse pessoal aí na fila?
SN – Estão retornando para entrevista.
RB – Mas, o anúncio?
SN – Escuta, ô, rapazinho, o anúncio diz boa aparência, entendeu, é pra tratar com cliente VIP, você não serve.
RB – Mas, eu tenho experiência.
SN – Não posso fazer nada.
CAPOEIRA
DIA VAI,
DIA VEM,
E O NEGRO CONTINUA SEM APARECER.
INVISÍVEIS SOMOS NÓS
EMPREGADO E BANDIDO DENTRO DA TV.
TENHO NOME,
SOU ALGUÉM
COM A COR DA PELE ESCURA NÃO MOLHO ROSÉ.
SEI FALAR.
SEI LUTAR
PELA MINHA NEGRITUDE QUE VOCÊ NÃO VÊ.
DIA VAI,
DIA VEM,
E O NEGRO CONTINUA SEM APARECER.
INVISÍVEIS SOMOS NÓS
EMPREGADO E BANDIDO DENTRO DA TV.
INTERVALO
CB – O problema dos pretos é que eles mesmos se excluem. É preciso eles se valorizarem, terem alma de branco, limpa, clara.
CN – Será mesmo? Qual é a cor da maioria dos médicos, juízes, prefeitos, governadores, presidentes. Quantos são negros?
CB – De repente eles não estão a fim.
CN – Somos a metade da população do Brasil, e somos tratados como minoria.
MC – Senhores, deixem de discussão. Afinal, este país é uma democracia, um paraíso onde todos podem falar o que quiser... (fala baixinho) contanto que não incomode quem manda no pedaço.
CENA III
MÚSICA IDENTIDADE, DE JORGE ARAGÃO
Elevador de um prédio de alta renda. Uma Senhora Negra espera; e, então, chega uma Mulher branca com sua filhinha galega. A Senhora Negra, de cabelos encaracolados, olha de cima a baixo, com desdém para as duas, e diz:
SaNL – Ora, vocês não sabem ler?! Este elevador é social, para moradores. O de serviço é esse ao lado.
A Menina Branca responde:
MaBR - Mas, esse daí tá quebrado. Diz na placa.
SaNL – Ah! A branquinha sabe ler, que bom. Então sigam aquela seta, onde diz: ESCADA.
A mãe, logo, mete-se.
SaBR – Ei! Senhora, nós somos moradores.
SaNL – Com certeza... Devem morar em um cubículo de empregada. Vocês não têm categoria para morar aqui.
SaBR – Olhe aqui!... (aponta o dedo para a outra).
Entra o Zelador Branco:
ZB – Ei! Não aponte o dedo para a Madame.
SaNL – Senhor Zelador, esta macaca branca diz que mora aqui.
ZB – Não sei se mora, mas se não for pela escada, eu chamo a polícia.
A criança começa a chorar. A mãe, em desespero, tenta consolá-la:
SaBR- É, minha filha, a gente branco não vale nada nesse país, mesmo.
INTERVALO
CB - As pessoas de cor têm de se cuidar, melhorar a aparência.
CN – Não! É preciso assumir o que se é, e não o que os outros querem que seja.
CB – Ora, o próprio negro é que se discrimina.
CN – Onde já se viu? Quem é louco para criar racismo contra si mesmo? A pessoa que não se assume negra inventou isso ou aprendeu com a sociedade?
CENA IV
Entra uma Menina Branca Pobre, de cabelos lisos, e sua mãe, uma Senhora Branca de cabelo Pixaim.
SBP – Que imundície de cabelo ruim o dessa menina, não dá pra fazer uma trança, até broche cai. Não sei pra quem tu puxaste!
A Menina chora.
MaBP – Mãe! Eu queria ter cabelo de Negra. Ah!
Entra o Propagandista.
P - AHHHAÁ! Enrolaife é a solução!
Mãe e filha ficam surpresas.
SBP e MBP – Como?!
P – Ora, esse é o mais moderno produto de estética, beleza e boniteza capilar, que faz até cabelo de careca enrolar.
SBP – Não conheço.
P – Pois, é verdade. Não é milagre, é Enrolaife, o xampu que faz seu pêlo virar Black Power.
SBP – Ah! Me dá, me dá logo três pra garantir. Agora eu resolvo o problema desse macarrão escorrido na cabeça dessa menina.
GOSPEL
SE VOCÊ PENSA
QUE NEGRO PRECISA ANDAR SAMBANDO
CHEIO DE ENFEITE, ROUPA COLORIDA,
QUE SE NÃO ANDAR ASSIM
ESTÁ QUERENDO SER BRANCO...
ISSO É RACISMO, IRMÃO!
SE VOCÊ PENSA
QUE NEGRO É SEMPRE SUSPEITO
QUE ROUPA BOA ADIANTA NÃO.
NÃO É SÓ FALTA DE RESPEITO,
É RACISMO, IRMÃO.
MESMO QUE VOCÊ NÃO SAIBA,
RACISTA NÃO ANDA COM CRACHÁ NA CARA.
RACISMO NÃO ESCOLHE CLASSE, FORMAÇÃO OU IDADE,
ELE ADOECE O CORAÇÃO HUMANO.
CENA V
Entra um Menino Branco, posiciona-se em meio à confusão de passageiros, entre arrancos e freadas bruscas do motorista.
MoB - Ô, Motora! Manera aí! Senhoras e Senhores passagero, bom dia, peço um minuto de sua atenção. Eu tô aqui pedindo uma força pro meu trabalho. Eu não tenho vergonha, por que eu prefiro trabalhar do que tá por aí cherando cola, robando, né. Eu tô vendendo esses bombom sabor andiroba, alho e copaíba. É remédio natural. Custa apenas somente cinqüenta centavos, ou dois por um vale. Vocês pode leva também pras criançada em casa. Eu vivo com minha mãe deficiente e mais doze irmão. Aquelas pessoa que pudere me ajudar, Deus lhe proteja. Quem não pudé contribuir, Deus lhe dê em dobro, viu. Um bom dia a todos e uma boa viaje.
O menino não consegue vender, então insiste.
- Compra aí, tio. Dois por um real ou um vale. Compra, tia, só pra me ajudá. Branco também tem fome, tia.
As pessoas viram o rosto, ignoram ou desprezam friamente o menino.
Dois Passageiros Negros, um deles comenta:
PN I – Devia ser proibido esses moleques brancos entrarem no ônibus. Nunca se sabe, pode ser até bandido..
PN II –São todos uns preguiçosos. Gente dessa cor não quer estudar, nem emprego sério, se acostuma na miséria.
De repente, o segundo passageiro se despede do primeiro e desce do ônibus. O menino faz menção de sentar ao lado desse passageiro, ao que este reage dizendo:
PN I – Ei! Menino branco, o que é que você faz aqui?
MoB - Vou sentar.
PN I – Aqui, mesmo, não. Vai roubar outro pra lá, seu fedorento!
MoB – Eu tô trabalhando, moço.
PN I – Branco não senta do meu lado, vai pra lá com esse teu nariz afilado, venta de flecha.
MoB – Qué isso?
PN I – Sai pra lá.
MoB – O senhor é racista!
PN I – Racista, não. Olha que eu te processo por calúnia.
MoB – Então, me respeite.
PN I – Ora, seu moleque. O problema de gente da tua laia é que não quer estudar. Meu preconceito é com essa tua classe desclassificada. Se for branquelo, pra mim tanto faz!
Os dois saem discutindo.
MÚSICA MISÉRIA S.A.,O RAPPA
INTERVALO
CB – O negócio é embranquecer, melhorar o sangue. Só assim a sociedade vai melhorar.
CN – Tornar-se negro é reconhecer e ter orgulho de sua origem e cultura africana.
CENA VI
MÚSICA HOW DO SPEAK, DE ETTA JAMES
Um casal de namorados em momento de ternura no passeio público, de mãos dadas. Enquanto isso, um mendigo levanta-se e observa o casal, uma negra e um branco, e comenta com o público.
M – Branquelo transparente se deu bem, hein?! Arranjou uma moça linda pra namorar. É... Mas, aí tem. Com certeza, ou ele tem grana, ou fez feitiço pra ela ou ela é cega. Uma mulher dessa, de boa aparência, boa pessoa, namorando um elemento desse. Ah, se fosse minha filha...
Entra o pai da moça negra.
PN – Minha filha, que vergonha. Afasta-te dessa coisa feia, desse branco sujo.
MÇN – Mas, Pai, eu...
PN – Cala a boca! Não estou dizendo! Escuta bem: filha minha não namora com malandro.
RB – Mas, eu trabalho, Doutor.
PN – Que trabalha! Gente da tua cor só serve para limpar chão e morar na cadeia.
MÇN – Papai!
PN – Vamos para casa. Não a quero conversando com esse.. esse...sem cor... esse bacalhau!
A expressão do rapaz é desoladora. Ele se queda tão chocado que não consegue chorar, apenas fica de olhos vidrados e sai cambaleante.
Entra o propagandista e lhe anima, convidando-o a comprar, e o leva para fora de cena:
P –Tudo isto é fácil de resolver. A linha Enrolaife trouxe para você o mais fabuloso enegrecedor. Você dorme pálido e acorda de cor.
INTERVALO
CB – Viram isto? Ora, senhoras e senhores, é a prova de que nossa sociedade é justa e igualitária. Não precisa desse negócio de cotas, é besteira. Até eu, que sou branco puro, me misturo com as neguinhas de vez em quando.
CN – Somos diferentes na beleza e na cultura. A sociedade racista nos trata diferente (pior), como se não fôssemos gente. Por isso, é preciso leis que combatam a desigualdade, equilibrem a balança social.
RAP
QUANDO
VOCÊ NÃO SENTA AO LADO DE NEGRO NO ÔNIBUS.
QUANDO
VOCÊ REPETE QUE GOSTA DE PRETO,
QUANDO PRETO É BONITO,
E A EMPREGADA PRETA LHE AGRADA.
É RACISMO, MANO! É RACISMO, MANO!
QUANDO
CÊ TEM VERGONHA DE SE DIZER PRETO,
É MORENO, MESTIÇO, CAFÉ COM LEITE, MULATO
JAMBO, PARDO VOCÊ QUER SER.
QUANDO
CHAPA O CABELO POR VERGONHA E NÃO VAIDADE,
E QUER SEU FILHO CASADO COM BRANCO,
LOIRA BONITA QUE LHE DÊ KNOW HOW,
É RACISMO, MANO,
SUICÍDIO MORAL!
É RACISMO, MANO! É RACISMO!
CENA VII
Menina Branca limpa o chão da casa. De repente, pára e exibe seu pixaim, orgulhosa.
MaB – Sou uma nova pessoa, Enrolaife mudou a minha vida. Sou quase uma negra pura. Ah! Como eu queria ter a pele preta, aquele lindo brilho nos olhos e o sorriso alvo. Por que será que Deus me castigou com essa pele desbotada, opaca, sem vida.
Mas, com Enrolaife, ao menos meus cabelos se ajeitaram, e eu tenho mais orgulho de mim mesma. Se eu tivesse grana, casava com um negro ma-ra-vi-lho-so.
A menina continua a limpeza. Entra o Senhor Negro.
SrN – Ei, menina, você não está limpando direito esse piso. Que imundície! Mas, (a pega pelo braço e olha a pele dela) Ah! Claro! Tinha de ser. Logo vi que era serviço de branco.
MaB – Mas, seu minino, dá até pra ajeitar os cachos no espelho que tá esse chão.
SrN – Vocês, brancos, não se ajeitam mesmo, quando não sujam na entrada...
MaB – Não seu minino,meu irmão vai é ser doutor, tá istudando.
SrN – Rá! Rá! Com certeza. Escuta, ô, mocinha, lugar de branco é na favela e no sanitário. Teu irmão tem que aprender o lugar dele.
Chega a Senhora Negra de cabelos lisos, esposa desse Senhor.
SaNL – Querido! Não se misture com essa gente! Gente assim só enegrece quando tem talento pra cantar, jogar futebol, ser atleta. Alguns brancos merecem viver no nosso mundo, são vencedores, são bonitos, são exceção.
MaB – Vocês são é racista.
SaNL – Não diga besteira, minha filha. Se há discriminação é social. Existem pessoas por aí (nós, não, claro, somos humildes), existem pessoas por aí que tratam mal os pobres. Os pobres, coitados, são desprezados. Não tem nada a ver com brancura.
SAMBA
ALMA NÃO TEM COR
POR QUE EU SOU NEGRO
ALMA NÃO TEM COR
POR QUE EU SOU BRANCO.
EU SOU AMARELO
DE PELE VERMELHA.
MAS, IGUAL A VOCÊ
EU TENHO ALMA NEGRA.
EU SOU AMARELO
DE PELE ROSÉ
MAS TENHO ALMA BRANCA
IGUAL A VOCÊ
EU SOU AMARELO,
DE PELE ESCURA,
MAS TENHO ALMA ÍNDIA
TIPO A SUA.
E SINTO DOR, E SINTO DOR,
SORRIO E SOFRO.
ALMA NÃO TEM COR, NÃO TEM COR.
SOMOS O POVO.
CENA VIII
Amigos Negros reunidos num bar.
A1 – Tu sabes a diferença entre um branco e um rato? O rato tem inteligência.
A2 – Essa é boa. E tu sabes o que acontece se a gente jogar um branco de cima de um prédio?
A3 – Ele morre?
A2 – Não. Se cair no chão é leite azedo, se voar é PEIDO.
A1 – Beleza! Rá! Rá! Rá!
A3 – Só sei que negro correndo é atleta e branco correndo é comédia.
A1 – Rá! Isso aí. Vi um branco correndo, é um monte de carne mole.
A3 – Eu gosto de branco, principalmente com cebola e batata.
A2 – Ei! Ó os homens aí.
O camburão estaciona. Descem os policiais, salivando para humilhar alguém. Vão direto ao grupo de brancos. Enquanto isso, os amigos negros observam e riem.
P1 – Vocês aí! Ô pivete, documento!
RB1 – Mas, não são nem dez da noite.
P1 – Tá me desafiando. Moleque? Cadê a identidade?
P2 – É isso aí! Respeito, malandro. Todo mundo no chão!
RB2 – Ei! A gente trabalha, viu. Por que não revista aqueles boyzinhos ali?
P2 – Cala a boca, brancalhada! Vamo lá, todo mundo recolhido!
Gritaria geral. Mas, não há como resistir, os policiais estão armados, e, facilmente, amarram com cordas os rapazes e os empurram para dentro do camburão.
A cena congela.
EPÍLOGO
CN - Isto que vocês acabaram de assistir é uma farsa? Os lugares estão errados? Eu respondo!
Tudo isso acontece diferente. Esse mundo o negro vê. Mas, no lugar do branco está ele. E muita gente acha comum, engraçado, normal.
Agora, quando o branco fica no lugar do negro, as pessoas talvez achem estranho, chocante, sem sentido.
Ei, negro! Ponha-se no seu lugar!
É isso o que diz o racista, achando que é justo.
E eu, agora, digo: Ei, branco, ponha-se no meu lugar! E você vai ver como é ter na pele, no cabelo, em todo o teu ser... A marca que te faz ser visto como o diferente, o esquisito, o inferior.
Então, pense no que acabou de ver. E, ponha-se no meu lugar.
Ponha-se no meu lugar! E me diga:
Isso é racismo? Isso é racismo?
TEMPO PARA A PLATÉIA
E, lembre-se, negro não é coitado, é injustiçado.
VOLTA A MÚSICA IDENTIDADE
JULIETA & ROMEU
Uma adaptação da obra “Romeu e Julieta” de William Shakespeare.
Belém, Icoaraci, outubro de 2006.
Ricardo Torres
PRÓLOGO
PRIMEIRO ATO
CENA I
Dois servos entram a conversar.
GREGÓRIO- Sansão, não podemos agüentar desaforo!
SANSÃO- Claro, Gregório, não somos carregadores.
G- Estou falando de não aceitar ofensa!
S- Isso! Não aceitamos presentes de qualquer um!
G- E se tu visses um Montecchio?
S- Ah!...Eu não aceitaria presente nenhum deles.
G- Os montecchio são cães!
S- É, Cães! Eu lato para eles ...Au! Au!
G- Ei! Aí vem um deles!
Entra um outro servo. Sansão late para ele.
SANSÃO- Au!Au!
SERVO MONTECCHIO- Estás latindo para mim, senhor?
SANSÃO- Estou latindo.
SM- Mas, é para mim, senhor !?
S-Se eu disser que sim, vou preso? (pergunta a Gregório)
GREGÓRIO- Sim.
(Sansão balança a cabeça negando).
SM- Queres brigar, senhor?
S- Nããão...
SM- Pois, aqui estou.(começa a briga, com empurrões, trapalhada e gritaria).
Chega outro servo e grita.
- Capuletos! ou melhor, servos de Capuleto! ou melhor, covardes!
Chegam servos das duas famílias, e por fim, os chefes das mesmas. E os cidadãos reclamam.
CORO - Aí vem, o velho Capuleto! Aí vem o velho Montecchio!Empurrões! Confusão! Gritos! Pavor!Fora Capuletos! Fora Montecchios!
Entra o Príncipe.
- Vassalos! Bundões! Meninos maus! Inimigo da paz! Banham espadas com sangue de vizinhos! É a terceira vez que brigam como gangues e acabam com o sossego de todos! Da próxima vez serão punidos com a morte na forca.
Entra a Sra. Montecchio.
- Alguém viu Romeu? Ainda bem que meu filhinho não está aqui...
CENA II
Romeu, choroso. Entra Benvólio.
R- Ah! Meu espírito se arrasta pelas horas, carrego a tristeza nas costas como um caracol. Quem eu quero não me quer!!!
B- Romeu! Tanta mulher por aí dando sopa!
R- Mas eu só enxergo uma...(passa uma garota rebolando e ele dá uma boa olhada).
CENA III
SR CAPULETO – Vai, cabeça, convida as pessoas desta lista para nosso grande baile, devemos agradar o príncipe.
Servo sai, olha a lista e começa a tentar soletrar.
GREGÓRIO- Si-so-ba-ma-le-ti-ca-ah! Agora lascou-se, eu não sei ler. Tenho de arranjar alguém pra decifrar.
Passa Romeu.
G- Ei, rapaz. Tô fazendo uma pesquisa sobre leitura. Tu sabes ler?
R- Claro.
G- Então vá, prova, lê esta lista.
R- Amadeu Calisto e família. Pode comemorar! Você foi convidado!
Estrúbulo Saavedra Pinheiro e sobrinha.
Rita Amaralis e papagaio. Você foi convidado!
Lorenzo Hebert Rodrans. Pode comemorar!
Ivanu Terno de linhaça
Tostão de Araújo Cruzeiro.
Raimunda Favacho , pode comemorar! Você foi aprovada! Você passou ...
É ... Foi convidada pra festa do... do...
G-Capuleto, isso mesmo. É, você leu tudo certinho, mesmo. Me dá a lista.
R- Espera aí, a Raimunda vai estar lá!?
G- Vai, e se tu não fores amigo de Montecchio, apareça lá também, vai ter muita comida de graça.
R- Demorou.
CENA IV
Festa na casa dos Capuleto. Entram Romeu e Benvólio.
ROMEU - Festão.
BENVÓLIO- Só.
Romeu avista ao longe uma linda moça, junto à Ama. O garçom passa e Romeu indaga.
ROMEU- Quem é aquela Princesa?
GARÇOM- Não sei, senhor.
R- Realmente, ela está de máscara. Mas, se mesmo assim sua beleza encanta, imagina. Ela é como um anjo, será que doeu quando caiu do céu ou tinha pára-quedas. Será que ela gosta de brigadeiro? Qual será seu signo? Ela desliza, desliza no ar (Julieta começa a dançar brega) como uma tampa de margarina caindo. Não, não, como uma ficha de refrigeranteretirada...Melhor, ela se parece com uma jóia feita de sol, iluminando a noite... égua, onde foi que li isso?
BENVÓLIO – Será por causa desse sol que está esse calor?
TEOBALDO (num outro canto) – Ei! Aquele não é o paspalho do Romeu!
SR. CAPULETO – Não, parece que é o Romeu mesmo.
T- Vou matá-lo.
SR. CAPULETO- Na-na-ni-na-não! Tá doido,tá doido, tá doido? Deixa, ele está se portando como um cavalheiro (Romeu tira meleca do nariz, limpa na própria roupa e coça o saco, tudo isso olhando pra Julieta, que o observa curiosa), nem comeu muito.
T- Isso não vai terminar bem. Ele vai dançar nessa.
Romeu aproxima-se de Julieta. Toca a mão de Julieta.
R-Se minhas mãos sujam as tuas, quisera eu resolver com um toque de meus lábios (beija sua mão).
JULIETA- Não, Senhor mendigo (pois assim está fantasiado Romeu), tuas mãos são macias e educadas. E mais, mãos de princesas são para tocar mãos de súditos.
R- E as princesas têm boca?
J- Claro! Como iriam falar? Elas têm boca para dar ordens.
R- Ordena, então, que os lábios façam o que as mãos fazem (beija Julieta).
J- Mas, tu me contaminaste com a saliva do povo. Ordeno que resolvas isso.
R- Ah! Então, devolva-me minha pobreza (beija-a de novo).
J- Beijas como um nobre...
R- Não diga que beijo como nobre, pois só os pobres beijam bem, pois não têm vergonha de beijar.
AMA- Julieta, passa pra dentro, tua mãe tá te chamando!
ROMEU – Quem é a mãe dela?
AMA- Ora a dona da casa.
R- Cacilda! Minha vida nas mãos de meu inimigo.
A- O quê?
R- Nada, nada...
JULIETA (para a Ama)– Quem são aqueles rapazes?
A- Parentes do Montecchio.
J- E aquele que não dançou? Vai lá, pergunta o nome dele.
(Ama vai, e quando volta...)
A- É Romeu, filho do velho Montecchio.
J- Não! Meu amor é meu ódio! Vi o amor cedo e conheci tarde.
CORO – Agora, morreu o antigo encanto, e a paixão tomou tudo. A antiga beleza perdeu-se e no seu lugar os amantes perdem-se no olhar um do outro. Mas, inimigos não podem se enamorar nem ficar. Só que o amor cria fugas, inventa esconderijos para escapar da tirania, e as loucuras ficam doces.
SEGUNDO ATO
CENA I
Romeu pula o muro e se esconde por trás do arbusto para observar Julieta.
ROMEU – Quem ri das feridas nunca se esbrechou. Mas... O que é isso? (sai Julieta à janela).O sol nascendo a essa hora da noite? Ah, é ela que vem à janela. Poxa! precisava vir com a cara cheia de creme? Não importa, a lua inveja Julieta, pois tem mais buracos na cara que ela. Mas, ela fala...
J- Ai de mim!
R- Oh! Que mãozinha linda, que tatuagem... Ei! Tá muito saidinha essa Julieta. Mas, que anjo...
J- Ó, Romeu, Romeu! Sai de casa e muda teu nome. Diz que me ama e eu deixo minha casa e deixo de ser amamãezada.
Romeu fica indeciso sobre mostrar-se ou não à Julieta.
R- Agora eu falo.
J- Teu nome é meu inimigo, mas não tu. O que é teu nome, Montecchio??
R- Eu...
J- Cala-te! Estou falando sozinha........Se a rosa tivesse outro nome não continuaria tendo o mesmo perfume e custando caro? Romeu, deixa teu nome e toma-me.
R- Eu tomo! Meu nome agora é amor!
J- Quem é!?
R- Não digo meu nome, que é teu inimigo.
J- É Romeu! Como chegou aqui? (Romeu sobe até a sacada)
R- As asas do amor, e uns arranhões no joelho.
J- Romeu, tu me amas?
R- Juro.
J- Não jura que é pecado.
R- Então disconjuro!
J- Oh! Não me amas.
R- É claro.
J- Mas é de noite.
R- Meu amor, que a noite nunca acabe.
J- Mas, já me chamam lá dentro.
R- Diz que está na privada.
J- Não dá, o banheiro é lá embaixo.
R- Então, tchau. Boa noite.
J- Vai, depois a gente se fala.
R- Boa noite.
J- Boa noite.
R- Mil vezes boa noite.
J- Boa, boa, vai!vai! égua, coisa chata.
CENA II
Romeu vai falar com o Frei.
FREI – Cadê aquela tristeza, rapaz? Já está com outra donzela?
ROMEU- Se ela é donzela, não me interessa. Eu a amo, e ela é linda.
F- Romeu, juízo Romeu.
R- Ah, Frei Lourenço, o amor não segue conselhos.
F- Por isso faz burrada.
R- Burros são lindos animais de Deus.
F- Cuidado, essa pode te botar chifre também.
R- Oh, os bois são fortes e magníficos.
F- Senhor! Esse enlouqueceu de novo. E é doidice pior que a outra .
R- Aí vem ela.
F- Ma...Mas... É Julieta Capuleto!
R- É ... Meu amor.
F- Dois malucos. E eu de laranja na história.
R-Romeu – Frei, case-nos.
F- Quê que é isso!?
(Esta parte é cantada).
JULIETA – Seu Frei, eu quero me casar.
F- Oh, minha filha, você diga com quem.
J- Eu quero me casar com o Romeu.
F- Com o Romeu você se casa bem
J- Por que, Seu Frei?
F- O Romeu é leso que nem tu, e vai ter que agüentar tatu também.
CENA III
Casamento.
FREI – Que o céu sorria, que a terra não nos faça chorar. Marido e mulher, não comem na mesma colher. Bebem da mesma água, mas cada um na sua taça. Fazem compras, mas o marido é que paga. Tu, Romeu, aceita a figura da Julieta para amá-la e aturá-la para sempre?
ROMEU- Para sempre é muito (Julieta o belisca). Ok! Ok!
F- E tu , Julieta, te serve este traste... epa... Romeu como legítimo esposo até que a morte finalmente os separe, e não sei que tem mais lá?
JULIETA- Yes.
F- Então, tá então... Eis que sois agora uma só família, e uma só despesa. Deus os abençoe.
CENA IV
Entra Mercúcio Montecchio. Depois chega Teobaldo Capuleto.
TEOBALDO – Eia, Montecchio. Posso lhe dar uma palavra?
MERCÚCIO- Uma palavra? Não, quero mais que isso.
T- Está afim de um beijo, Mercúcio?
M- Dê um selinho em minha espada,Teozinho.
Brigam. Em seguida chega Romeu. Mercúcio está morrendo.
ROMEU- Meu amigo, Mercúcio, que há?
MERCÚCIO- Um ferimento leve.
R- Ah! Então até mais tarde.
M- Não, Romeu! Estou indo, estou indo!
R- Para onde?
M- Estou morrendo, seu paspalho!
R- Coração?
M- Espada.
R- Quem foi? (mercúcio aponta Teobaldo com o bico).
R- Teobaldo! Rato fujão! (Corre atrás de Teobaldo). Quero vingança.
TEOBALDO- Infelizmente, a vingança acabou. Temos apenas lâmina decepadora de cabeças.
R- Verme...
T- Ei! Eu ouvi isso.
R- Então, junta-te à alma de Mercúcio.
Teobaldo cai morto. Entra o Príncipe.
PRÍNCIPE- Quem fez esta bagunça toda?
CORO – Foi ele! Não, foi ele! Ele! Foi! Não! Foram Romeu e Teobaldo!
P- Porque foi o único assassino a sobreviver, Romeu vai ser exilado. Fora Romeu!
TERCEIRO ATO
CENA I
Quarto de Julieta
AMA – Minha senhora, a tragédia caiu sobre nós. Teobaldo, teu primo, passou dessa pra melhor.
JULIETA – Ficou rico?
A- Não, bobona, foi assassinado!
J – Quem o fez?
A- Romeu, e este foi banido da cidade.
J- Miséria, a minha alma está feliz e envergonhada com a vida de meu amor.
Entram Senhor e Senhora Capuleto.
SR CAPULETO – Eis aqui, minha filha, o teu noivo que escolhi.
JULIETA- Que é isso, pai?
SRA. CAPULETO – Ora, Julieta, Paris é de família nobre e rapaz honesto.
J- E o kiko?
SR. CAPULETO – Está decidido. Casas querendo ou não, que o assassino já não está na cidade.
CENA II
Julieta e Frei Lourenço.
F- Aqui está Julieta, este remédio é uma imitação da morte. Chega em casa, aceita teu noivo , depois toma isso e deita. Após teu sepultamento, acordarás e fugirás com Romeu.
J- Como ele saberá.
F- Mandei um menino entregar-lhe um bilhete.
CENA III
Quarto de Julieta. Entra o seu pai.
SR. CAPULETO – E aí, casarás com Páris?
JULIETA- Se é para bem do bolso e felicidade desse bundão, diga a todos que fico, aliás, caso.
Julieta fica só e toma o remédio. Em seguida, sua mãe entra.
SRA. CAPULETO- Ai de mim!
SR. CAPULETO– Onde dói, mulher!?
SRA- No peito, na alma!
SR- É esse sutiã apertado. Eu te disse.
SRA- Nossa filha está morta,
SR- Sobre a mais linda flor de meu jardim caiu o mais frio terror, e sobre mim o castigo pior.
QUARTO ATO
CENA ÚNICA
Enterro de Julieta. Depois, saem todos.
Em seguida, aparece o menino de recado, brincando bola, sem ligar para o bilhete que tinha de entregar.
Entra Romeu na catacumba, se aproxima do corpo de Mercúcio, e só depois avista Julieta.
ROMEU- Neste veneno, minha vida vai embora. Mas, já estava morto longe de minha senhora. Não é possível...Julieta! Meu amor, eis que me encontrarei contigo...Será que há vida após a morte? É, mas já que eu tô aqui mesmo... (toma o veneno).
Acorda Julieta.
J -Romeu, dormiu me esperando, meu amor. Mas... Oh! Não! O sono eterno! Uma faca, Uma espada! Ei! Com que ele se matou?
R - Com veneno, besta... (fala Romeu quando Julieta vira-se chorando).
J - Ah! Foi veneno, sinto o cheiro. Pô, que mau hálito Hein! Romeu. Estavas exilado no lixão, era?
Tapando o nariz, beija Romeu sugando-lhe o veneno. Morre Julieta, estrebuchando.
Entra Frei Lourenço.
F – Que Tragédia! Mas não era pra ser comédia professora!? Morreu, morreu. [baixo: antes eles do que eu...]. Deus os tenha jovens amantes, pois o mundo não lhes compreendeu.
Os corpos são carregados até a praça central.
Todos chegam comovidos. Entra o Príncipe.
Príncipe- O ódio das famílias mata a flor que acaba de desabrochar. A insensatez da violência foi maior e a paixão feneceu.Mas, o certo é que jamais houve história de amor tão triste e maluca como esta de Julieta e Romeu.