Este
certamente é o maior problema enfrentado pela escola brasileira nos
dias de hoje, e que dá ao Brasil um lugar bastante desconcertante quando
em comparação com os outros países. Mais precisamente, os índices de
retenção e evasão escolar no país são semelhantes aos de países
africanos como a Nigéria e o Sudão. Mais ainda, quando se investiga a
qualidade do ensino ministrado entre aqueles que permaneceram na escola,
o quadro não é menos desolador. A esse último efeito temos chamado de
"fracasso dos incluídos".
Convenhamos,
não é estranho e contraditório que, dependendo do quesito (o econômico
ou o político, por exemplo), os brasileiros apreciem ser comparados aos
europeus ou asiáticos, e no quesito educacional nós sejamos forçados a
nos alocar no mesmo patamar de países castigados da África?
Esse
é um dado alarmante que tem chamado a atenção de muitos, desde a esfera
governamental até a do cidadão comum, passando pelos profissionais da
educação. Poder-se-ia dizer, inclusive, que há uma espécie de
"mal-estar" pairando sobre a escola e o trabalho do professor hoje em
dia. A própria imagem social da escola parece estar em xeque de tal
maneira que os profissionais da área acabam acometidos, por exemplo, de
uma espécie de falta aguda de credibilidade profissional.
É
certo, pois, que grande parte dos problemas que enfrentamos como
categoria profissional, inclusive no interior da sala de aula, parece
ter relação (i)mediata com essa lastimável falta de credibilidade da
intervenção escolar e, por extensão, da atuação do educador. Além disso,
se a imagem social da escola está ameaçada, algo de ameaçador está
acontecendo também com a idéia de cidadania no Brasil, uma vez que não
há cidadania sustentável sem escola.
É
importante frisar que, sem escola, não há a possibilidade de o cidadão
ter acesso, de fato, aos seus direitos constituídos. Afinal, tornar-se
cidadão não se restringe ao direito do voto, por exemplo, mas inclui
direitos outros com vistas a uma vida com dignidade -
e isso tudo tem a ver mediatamente com escola, pois quanto menor for a
escolaridade da pessoa, menores também serão suas chances de acesso às
oportunidades que o mundo atual oferece e às exigências que ele impõe.
Entretanto,
alguns poucos ainda parecem questionar a importância intrínseca da
escolarização nos dias de hoje. Será isso plausível? De uma coisa
estejamos certos: num futuro bem próximo, o mundo será implacável com
aqueles sem escolaridade. Basta olhar à nossa volta e prestar atenção na
situação concreta das pessoas desempregadas, por exemplo.
Pois
bem, quando alguém se propõe a investigar as razões desse "fantasma" do
fracasso que ronda a todos nós, ultimamente tem aparecido, dentre as
muitas razões alegadas pelos educadores (desde as ligadas à esfera
governamental até aquelas de cunho social), uma figura muito polêmica: o
"aluno-problema".
O
aluno-problema é tomado, em geral, como aquele que padece de certos
supostos "distúrbios psico/pedagógicos"; distúrbios estes que podem ser
de natureza cognitiva (os tais "distúrbios de aprendizagem") ou de
natureza comportamental, e nessa última categoria enquadra-se um grande
conjunto de ações que chamamos usualmente de "indisciplinadas". Dessa
forma, a indisciplina e o baixo aproveitamento dos alunos seriam como
duas faces de uma mesma moeda, representando os dois grandes males da
escola contemporânea, geradores do fracasso escolar, e os dois
principais obstáculos para o trabalho docente.
Um
bom exemplo da justificativa do "aluno-problema" para o fracasso
escolar é uma espécie de máxima muito recorrente no meio pedagógico, que
se traduziria num enunciado mais ou menos parecido com este: "se o
aluno aprende, é porque o professor ensina; se ele não aprende, é porque
não quer ou porque apresenta algum tipo de distúrbio, de carência, de
falta de pré-requisito."
Mais
uma vez, não é algo estranho e contraditório para os profissionais da
área educacional explicar o sucesso escolar como produto da ação
pedagógica, e o fracasso escolar como produto de outras instâncias que
não a escola e a sala de aula? Isto é, se entendermos o fracasso escolar
como efeito de algum problema individual e anterior do aluno, não
estaremos nos isentando, em certa medida, da responsabilidade sobre
nossa ação profissional? E mesmo se assim o fosse, o que estaríamos
fazendo nós para alterar esse quadro cumulativo?
Ao
eleger o aluno-problema como um empecilho ou obstáculo para o trabalho
pedagógico, a categoria docente corre abertamente o risco de cometer um
sério equívoco ético, que é o seguinte: não se pode atribuir à clientela
escolar a responsabilidade pelas dificuldades e contratempos de nosso
trabalho, nossos "acidentes de percurso". Seria o mesmo que o médico
supor que o grande obstáculo da medicina atual são as novas doenças, ou o
advogado admitir que as pessoas que a ele recorrem apresentam-se como
um empecilho para o exercício "puro" de sua profissão. Curioso, não?
Na
verdade, os tais "alunos-problema" podem ser tomados como ocasião
privilegiada para que a ação docente se afirme, e que se possa alcançar
uma possível excelência profissional. O que se busca, no caso de um
exercício profissional de qualidade, é uma situação-problema, para que
se possa, na medida do possível, equacioná-la, suplantá-la - o que se oportuniza a partir das demandas "difíceis" da clientela.
Pois
bem, o que fazer, então? Um primeiro passo para reverter essa ordem de
coisas talvez seja repensar nossos posicionamentos, rever algumas
supostas verdades que, em vez de nos auxiliar, acabam sendo armadilhas
que apenas justificam o fracasso escolar, mas não conseguem alterar os
rumos e os efeitos do nosso trabalho cotidiano.
Vejamos
o caso específico da indisciplina. Na própria maneira de entender o
fenômeno disciplinar, podemos observar que as hipóteses explicativas
empregadas usualmente acabam reiterando alguns preconceitos, muitos
falsos conceitos e outras tantas justificativas para o fracasso e a
exclusão escolar. Encontram-se razões à profusão, mas alternativas
concretas de administração, como sabemos, são raras. Nossa tarefa,
então, a partir de agora passa a ser a de examinar concretamente os
argumentos que sustentam tais hipóteses.
2. A PRIMEIRA HIPÓTESE EXPLICATIVA: O ALUNO "DESRESPEITADOR"
Uma
primeira hipótese de explicação da indisciplina seria a de que "o aluno
de hoje em dia é menos respeitador do que o aluno de antes, e que, na
verdade, a escola atual teria se tornado muito permissiva, em comparação
ao rigor e à qualidade daquela educação de antigamente".
Esse
primeiro entendimento, mais de cunho histórico, da questão disciplinar
precisa ser repensado urgentemente. E a primeira coisa a admitir é que
essa escola de antigamente talvez não fosse tão "de excelência" quanto
gostamos de pensar hoje em dia. Vejamos por quê.
Nossa
memória costuma aplicar alguns truques em nós. Às vezes, é muito fácil
incorrermos numa espécie de saudosismo exacerbado, idealizando o passado
e cultivando lembranças de alguns fatos que não aconteceram ou que não
se desenrolaram exatamente do modo com que nos recordamos deles.
Portanto, se recuperarmos o modelo dessa escola do passado para
cotejarmos nossos problemas pedagógicos atuais, precisamos recuperar
também o contexto histórico da época, pelo menos em parte. Não é
possível trazer de volta aquela escola sem o entorno sociopolítico de
então.
É
muito comum nos reportarmos à escola de nossa infância com reverência,
admiração, nostalgia. Pois bem, na verdade, essa escola anterior aos
anos 70 era uma escola para poucos, muito poucos. Uma escola elitista,
portanto. Exclusão, pois, é um processo que já estava lá, nessa escola
de antigamente, hoje tão idealizada.
Eram
elas escolas militares ou religiosas, e algumas poucas leigas, que
atendiam uma parcela muito reduzida da população. Perguntemo-nos, por
exemplo, se ambos nossos pais tiveram escolaridade completa de oito
anos. Lembremo-nos então de nossos avós, se eles sequer chegaram a
freqüentar escolas! Quanto mais recuarmos no tempo, mais veremos como
escola sempre foi um artigo precioso, difícil de encontrar no varejo
social.
Todos
se lembram, ou pelo menos já ouviram falar, dos exames de admissão e,
portanto, do níveis "primário" e "ginasial". Pois é, esse é um bom
exemplo de como essas tais escolas de excelência do passado eram
fundamentalmente segregacionistas e elitistas, atendendo uma parcela
pequena e já privilegiada da população. O exame de admissão representava
o que hoje conhecemos como o vestibular para as universidades públicas,
já na passagem do primário para o ginásio. Inclusive, vale lembrar que a
partir do início dos anos 70 o primário e o ginasial deixaram de
existir, dando lugar ao "primeiro grau" (e mais recentemente ao "ensino
fundamental"), agora com oito anos consecutivos.
Desta feita, oito anos passaram a ser o tempo mínimo e obrigatório de escolaridade -
uma conquista e tanto! Além disso, o número de vagas e estabelecimentos
de ensino foi ampliado consideravelmente, democratizando cada vez mais o
acesso à escola. Entretanto, as conquistas que o povo brasileiro obteve
do ponto de vista da democratização do acesso ao ensino formal, com a
abertura de novas escolas/vagas e os oito anos mínimos, continuam um
projeto inacabado, uma tarefa por se encerrar, uma vez que, decorridas
quase três décadas da penúltima grande reforma do ensino brasileiro,
ainda não conseguimos fazer valer integralmente essa proposta de
democratização lá desencadeada. Outrossim, o grande desafio dos
educadores atuais passou a ser a permanência "de fato" das crianças na
escola - o que, sabidamente, se consegue apenas com a qualidade do ensino ofertado.
Essa
é a grande tarefa dos educadores brasileiros na atualidade: fazer com
que os alunos permaneçam na escola e que progridam tanto quantitativa
quanto qualitativamente nos estudos. Mesmo porque escolaridade mínima e
obrigatória é um direito adquirido de todo aquele nascido neste país. E
desse princípio ético-político, e também legal, não podemos abrir mão
sob hipótese nenhuma.
Quando
conseguirmos fazer com que a cada criança corresponda uma vaga numa
escola, bem como condições efetivas para que lá ela permaneça (e queira
permanecer) por pelo menos oito anos, algo de radicalmente
revolucionário terá acontecido neste país!
Contudo,
é curioso comparar o contingente da população efetivamente atendido
pelas escolas hoje e aquele de antigamente. De certa forma, a
porcentagem efetiva de aproveitamento escolar é ainda semelhante àquela
de antes. Poucos são aqueles que conseguem permanecer na escola até o
final do segundo grau, e menos ainda freqüentar uma universidade,
consolidando-se assim a famosa mas indesejável "pirâmide" educacional
brasileira. Parece, então, que ainda não conseguimos fazer valer aquele
célebre artigo da Constituição de 1988, o de número 205, que prega:
"educação é um direito de todos e um dever do Estado e da família".
É
tarefa de todos nós (principalmente os educadores) garantir uma escola
de qualidade e para todos, indisciplinados ou não, com recursos ou não,
com pré-requisitos ou não, com supostos problemas ou não. A inclusão,
pois, passa a ser o dever "número um" de todo educador preocupado com o
valor social de sua prática e, ao mesmo tempo, cioso de seus deveres
profissionais.
Outro
dado que precisa ser reconfigurado com certa imparcialidade quando
evocamos essas escolas do passado é o fato de que elas eram
fundamentalmente militarizadas no seu funcionamento cotidiano. E o que
isso significa? Se buscarmos exemplos em nossa memória, veremos isso com
clareza: as filas, o pátio, o uniforme, os cânticos, e particularmente a
relação de medo e coação que tínhamos com as figuras escolares (que
descuidadamente nomeamos hoje como "de respeito"), revelavam um espírito
fortemente hierarquizado/hierarquizante da época, desenhando os
contornos das relações institucionais.
É
possível afirmar, então, que essa suposta escola de excelência de
antigamente funcionava, na maioria das vezes, na base da ameaça e do
castigo -
traços nítidos de uma cultura militarizada impregnada no cotidiano
escolar daquela época sombria da história brasileira. Estamos nos
referindo, é claro, à ditadura militar.
Assim,
quando constatamos que nosso aluno de hoje não viveu esses tempos
históricos obscuros, que ele é fruto de outras coordenadas históricas - e agora estamos nos referindo à abertura democrática -, fica claro que precisamos estabelecer outro tipo de relação civil em sala de aula.
É
óbvio que uma relação de respeito é condição necessária (embora não
suficiente) para o trabalho pedagógico. No entanto, podemos respeitar
alguém por temê-lo ou podemos respeitar alguém por admirá-lo. Mas,
convenhamos, há uma grande diferença entre esses dois tipos de
"respeito". O primeiro funda-se nas noções de hierarquia e
superioridade, o segundo, nas de assimetria e diferença. E há uma
incongruência estrutural entre elas!
Antes
o respeito do aluno, inspirado nos moldes militares, era fruto de uma
espécie de submissão e obediência cegas a um "superior" na hierarquia
escolar. Hoje, o respeito ao professor não mais pode advir do medo da
punição - assim como nos quartéis -
mas da autoridade inerente ao papel do "profissional" docente.
Trata-se, assim, de uma transformação histórica radical do lugar social
das práticas escolares. Hoje, o professor não é mais um encarregado de
distribuir e fazer cumprir ordens disciplinares, mas um profissional
cujas tarefas nem sequer se aproximam dessa função disciplinadora,
apassivadora, silenciadora, de antes.
Em
contraposição, boa parte dos profissionais da educação ainda parece
guardar ideais pedagógicos que preservam, de certa forma, a imagem dessa
escola de antigamente e desse professor repressor, castrador. Muitas
vezes, para esses profissionais o bom aluno do dia-a-dia é aquele
calado, imóvel, obediente. Será este um bom aluno, de fato?
É
muito estranho tomar uma descrição do cotidiano escolar do século
passado ou do meio desse século, e perceber que as escolas atuais têm um
funcionamento ainda parecido, em termos das normas disciplinares, com
aquelas escolas do passado. A punição, a represália, a submissão e o
medo ainda parecem habitar silenciosamente as salas de aula, só que
agora, por exemplo, por meio da avaliação. Não é verdade que muitas
vezes alguns professores chegam a ameaçar seus alunos com a promessa de
provas difíceis, notas baixas etc? Não será isso também outra estratégia
dissimulada de exclusão? O que dizer, então, das expulsões ou das
"transferências"?
Sob
esse ponto de vista, talvez a indisciplina escolar esteja nos indicando
que se trata de uma recusa desse novo sujeito histórico a práticas
fortemente arraigadas no cotidiano escolar, assim como uma tentativa de
apropriação da escola de outra maneira, mais aberta, mais fluida, mais
democrática. Trata-se do clamor de um novo tipo de relação civil,
confrontativa na maioria das vezes, pedindo passagem a qualquer custo.
Nesse sentido, a indisciplina estaria indicando também uma necessidade
legítima de transformações no interior das relações escolares e, em
particular, na relação professor-aluno. Assim, resta uma questão: afinal
de contas, escola para quê?
Sabemos
hoje que, por meio da exclusão de grande maioria da população, aquela
escola do passado não visava, em absoluto, o preparo para o exercício da
cidadania. E a escola e o professor de hoje? O que eles visam, a bem da
verdade? Qual o seu papel e função? São diferentes daqueles da escola
de antes? Se assim o forem, quais resultados temos obtido concretamente?
Enfim, estamos a serviço ainda da exclusão ditatorial ou da inclusão
democrática?
3. A SEGUNDA HIPÓTESE EXPLICATIVA: O ALUNO "SEM LIMITES"
Outra
hipótese muito em voga no meio escolar, produto de nosso suposto e, às
vezes, perigoso "bom senso" prático, diz respeito à suposição de que "as
crianças de hoje em dia não têm limites, não reconhecem a autoridade,
não respeitam as regras, e a responsabilidade por isso é dos pais, que
teriam se tornado muito permissivos". Quase todos parecem concordar com
essa hipótese do "déficit moral" como explicativa da indisciplina.
Pois
bem, esse tipo de entendimento da questão disciplinar, mais de cunho
psicológico, merece pelo menos dois reparos: o primeiro, com relação à
idéia de ausência absoluta de limites e do desrespeito às regras; o
segundo, sobre a suposta permissividade dos pais.
Vejamos
o primeiro: se prestarmos um pouco de atenção nos alunos mais
indisciplinados fora da sala de aula, num jogo coletivo, por exemplo,
veremos o quanto as regras são muito bem conhecidas pelas crianças e
adolescentes. Não é nada estranho a um jovem de hoje em dia a vivência
de uma situação qualquer de acordo com regras muito bem estabelecidas,
rígidas na maioria das vezes.
Um
bom exemplo disso se encontra quando, num jogo ou brincadeira infantil,
alguém não cumpre aquilo que foi acordado previamente entre os
participantes, e este assim considerado "desviante" ou infrator é
severamente punido ou mesmo expulso do jogo. No limite, pode-se afirmar
que um "governo" infantil é nitidamente despótico, porque não prevê
jurisprudências, prerrogativas, maleabilidade.
Nesse
sentido, as crianças, quando ingressam na escola, já conhecem muito bem
as regras de funcionamento de uma coletividade qualquer, mesmo porque
elas são inerentes a qualquer tipo de atividade humana, a qualquer tipo
de relação grupal. Podemos encontrar um outro exemplo concreto disso na
língua. Quando escolhemos uma palavra ou uma construção lingüística
específica para narrar algo, estamos nos sujeitando automaticamente a um
conjunto já dado de regras. E isso todos fazemos, queiramos ou não. A
criança e o jovem também o fazem, talvez até com mais força e veemência
do que os adultos.
Isso
é tão factual que, curiosamente, no mundo infantil as regras nem sequer
permitem muitas exceções. Quando uma criança diz, por exemplo, "eu
fazi" em vez de "eu fiz", ou "eu trazi" em vez de "eu trouxe", ela está
demonstrando o quanto está apegada a uma norma invariante já dada e que
descarta possíveis alterações, desvios. Ela está sendo, portanto,
rigorosa ao extremo. Dito de outra maneira, os seus "limites", inclusive
intelectuais, são extensivos, implacáveis - ao contrário do que possa parecer à primeira vista.
Desse
modo, não se pode sustentar, nem na teoria nem na prática, que as
crianças padeçam de falta generalizada de regra e de limite, embora esta
idéia esteja muito disseminada no meio escolar. Ao contrário, a
inquietação e a curiosidade infantis ou do jovem, que antes eram
simplesmente reprimidas, apagadas do cotidiano escolar, podem hoje ser
encaradas como excelentes ingredientes para o trabalho de sala de aula.
Só depende do manejo delas...
Não
é evidente que quanto mais engajado o aluno estiver nas atividades
propostas, maior será o rendimento do trabalho do professor? E que
quanto maior for a reapropriação das regras da matemática, da língua ou
das ciências, maiores serão o aproveitamento e o prazer em aprendê-las?
Uma vez de posse da "mecânica" de determinado campo de conhecimento (as
operações matemáticas, da gramática, das ciências, das artes, dos
esportes etc.), o pensamento do aluno parece fluir com maior rapidez e
plasticidade.
Pois
bem, um segundo reparo a essa idéia da falta de limites da criança e do
jovem refere-se à suposta permissividade dos pais que, por sua vez,
estaria criando obstáculos para o professor em sala de aula. Segundo boa
parte dos professores, a família, em certa medida, não estaria ajudando
o trabalho do professor, pois as crianças seriam frutos da
"desestruturação", do "despreparo" e do "abandono" dos pais (vale
lembrar, oriundos também das décadas de 60/70). E mais ainda, os
professores teriam se tornado quase "reféns" de crianças tirânicas,
deixados à mercê de crianças "sem educação". Será isso verdade?
É
muito comum imaginarmos que "criança mal-educada em casa" converte-se
automaticamente em "aluno indisciplinado na escola". Pois alertemos que
isso nem sempre é necessariamente verdadeiro. Não é possível generalizar
esse diagnóstico para justificar os diferentes casos de indisciplina
com os quais deparamos. Além disso, há uma evidência irrefutável de que
os mesmos alunos indisciplinados com alguns professores podem ser
bastante colaboradores com outros.
Ora,
precisamos recuperar alguns consensos quanto às funções da família e da
escola, distinguindo claramente os papéis de pai e de professor.
Família e escola não são a mesma coisa, e uma não é a continuidade
natural da outra; porque se assim o fosse, também o inverso da equação
acima deveria ser igualmente plausível. Ou seja: "aluno indisciplinado
na escola" converter-se-ia em "filho mal-educado em casa". Estranha essa
última fórmula, não?
Quando
desponta algum entrave de ordem disciplinar na sala de aula, uma das
atitudes usuais por parte dos professores é convocar as autoridades
escolares, e estes, os pais para que "dêem um jeito no seu filho".
Imaginemos se, a cada vez que o filho desses mesmos pais apresentasse um
problema disciplinar em casa, eles convocassem o professor para que
este também "desse um jeito no seu aluno". Muito estranho, não? Esse
exemplo ficcional revela o quanto se costuma confundir e, às vezes,
justapor os âmbitos de competências, os raios de ação das instituições
escola e família. Portanto, precisamos admitir um consenso básico,
muitas vezes esquecido no dia-a-dia escolar: o de que aluno não é filho,
e professor não é pai.
Em
geral, a maioria dos professores imagina que o trabalho de
disciplinarização moral da criança (de introjeção das regras e,
portanto, da constituição dos famigerados "limites"), a cargo mormente
dos pais, é um pré-requisito para o trabalho de sala de aula. E esta
idéia, embora correta em parte, também precisa ser repensada, pelo menos
em parte.
Quando
falamos genericamente em "educação" de uma criança ou jovem,
compreendemo-la como resultado conjunto da intervenção da família e da
escola. Embora essas duas instituições basais sejam complementares e
possam chegar a se articular, elas são bastante diferentes em suas
raízes, objetos e objetivos. O trabalho familiar diz respeito à
moralização da criança -
essa é a função primordial dos pais ou seus substitutos. A tarefa do
professor, por sua vez, não é moralizar a criança. O objeto do trabalho
escolar é fundamentalmente o conhecimento sistematizado, e seu objetivo,
a recriação deste. O resto é efeito colateral, indireto, mediato.
No
caso da família, o que está em foco é a ordenação da conduta da
criança, por meio da moralização de suas atitudes, seus hábitos; no caso
da escola, o que se visa é a ordenação do pensamento do aluno, por meio
da reapropriação do legado cultural, representado pelos diferentes
campos de conhecimento em pauta. Uma diferença e tanto, não é mesmo?
Mas
mesmo se se argumentasse que determinadas crianças não apresentam as
posturas morais mínimas para o trabalho de sala de aula (caso isso fosse
possível...), esse argumento admitiria a seguinte réplica: trata-se de
um complicador, jamais um impeditivo para o trabalho em torno do objeto
conhecimento, porque a docência sequer implica um trabalho semelhante
àquele realizado pela família.
Entretanto,
muitos professores, diante das dificuldades do dia-a-dia, acabam se
colocando como tarefa principal a normatização moral dos hábitos da
criança e do adolescente (leia-se aluno agora) para que, só a partir
daí, ele possa desencadear o trabalho do pensamento. Um bom exemplo
disso é um outro tipo de máxima muito freqüente no meio pedagógico que
reza, a nosso ver, equivocadamente: "para ser professor, é preciso antes
ser um pouco pai, amigo, conselheiro etc."
Esse tipo de enfrentamento do trabalho pedagógico é desaconselhável por três razões, pelo menos:
* em primeiro lugar,
trata-se de um desperdício da qualificação e do talento específico do
professor, porque ele não se profissionalizou para ser uma espécie de
pai "postiço". Para uma ocupação como a paternidade não se exige uma
preparação profissional -
cada um é pai ou mãe de um jeito peculiar e assistemático. No caso do
professor, exige-se uma preparação lenta e especializada, devendo ele
atuar de maneira semelhante aos seus colegas de profissão e de modo
diverso dos profissionais de outras áreas;
* em segundo lugar,
trata-se de um desvio de função, porque ele não foi contratado para
exercer tarefas parentais, e dele não se espera isso. Por mais que o
trabalho em sala de aula demande muitas vezes exigências adicionais ao
âmbito estritamente pedagógico, não se podem delegar ao professor
funções para as quais ele não esteja explicitamente habilitado. É
preciso, então, que o trabalho docente restrinja-se a um alvo
específico: o conhecimento sistematizado, por meio da recriação de um
campo lógico-conceitual particular. Não confundir seu papel com o de
outros profissionais e outras ocupações: eis uma tarefa de fôlego para o
professor de hoje em dia!;
* em terceiro,
trata-se de uma quebra do "contrato" pedagógico, porque o seu trabalho
deixa de ser realizado. Se o professor abandona seu posto, se ele não
cumpre suas funções específicas, quem fará isso por ele? Se o professor
não se responsabilizar imediatamente pelo conhecimento, quem o fará?
Como
em todas as outras relações sociais/institucionais (médico-paciente,
patrão-empregado, marido-mulher etc.), na relação pedagógica existe um
contrato implícito - um conjunto de regras funcionais -
que precisa ser conhecido e respeitado para que a ação possa se
concretizar a contento. E é curioso constatar que os próprios alunos têm
uma clareza impressionante quanto a essas balizas contratuais do
encontro pedagógico. Sem dúvida nenhuma, eles sabem reconhecer quando o
professor está exercendo suas funções, cumprindo seu papel. O professor
competente e cioso de seus deveres não é, em absoluto, um desconhecido
para os alunos; muito ao contrário. Estes sabem reconhecer e respeitar
as regras do jogo quando ele é bem jogado, da mesma forma que eles
também sabem reconhecer quando o professor abandona seu posto.
Nesse
sentido, a indisciplina parece ser uma resposta clara ao abandono ou à
habilidade das funções docentes em sala de aula, porque é só a partir de
seu papel evidenciado concretamente na ação em sala de aula que eles
podem ter clareza quanto ao seu próprio papel de aluno, complementar ao
de professor. Afinal, as atitudes de nossos alunos são um pouco da
imagem de nossas próprias atitudes. Não é verdade que, de certa forma,
nossos alunos espelham, pelo menos em parte, um pouco de nós mesmos?
Por
essa razão, talvez se possa entender a indisciplina como energia
desperdiçada, sem um alvo preciso ao qual se fixar, e como uma resposta,
portanto, ao que se oferta ao aluno. Enfim, a indisciplina do aluno
pode ser compreendida como uma espécie de termômetro da própria relação
do professor com seu campo de trabalho, seu papel e suas funções.
Sob
esse aspecto, valeria indagar: qual tem sido o teor de nosso
envolvimento com essa profissão? Temos nos posicionado mais como agentes
moralizadores ou como professores em sala de aula? Temos nos queixado
das famílias mais do que deveríamos ou, ao contrário, temos nos dedicado
com mais afinco ainda ao nosso campo de trabalho? Temos encarado os
alunos, nossos parceiros de trabalho, como filhos desregrados, frutos de
famílias desagregadas, ou como alunos inquietos, frutos de uma escola
pouco desafiadora intelectualmente? Enfim, indisciplina é uma resposta
ao fora ou ao dentro da sala de aula?
4. A TERCEIRA HIPÓTESE EXPLICATIVA: O ALUNO "DESINTERESSADO"
Ainda,
uma terceira hipótese que os professores levantam freqüentemente sobre
as razões da indisciplina é que "para os alunos, a sala de aula não é
tão atrativa quanto os outros meios de comunicação, e particularmente o
apelo da televisão. Por isso, a falta de interesse e a apatia em relação
à escola. A saída, então, seria ela se modernizar com o uso, por
exemplo, de recursos didáticos mais atraentes e assuntos mais atuais".
Esse
tipo de raciocínio, mais de cunho metodológico, também merece alguns
reparos. O principal deles refere-se ao fato mais do que evidente de que
escola não é um meio de comunicação. Da mesma forma que distinguimos
anteriormente as instituições família e escola, aqui faz-se importante a
distinção escola e mídia.
Enquanto
a mídia (os diversos meios de comunicação como a televisão, o rádio, o
jornal, o próprio computador atualmente etc.) têm como função primordial
a difusão da informação, a escola deve ter como objetivo principal a
reapropriação do conhecimento acumulado em certos campos do saber - aquilo que constitui as diversas disciplinas de um currículo.
Ainda,
os meios de comunicação podem ter como objetivo o entretenimento, o
lazer. Escola, ao contrário, é lugar de trabalho árduo e complexo, mas
nem por isso menos prazeroso... Por essa razão, assim como afirmamos
anteriormente que professor não é pai e aluno não é filho, é preciso
acrescentar: o professor não é um difusor de informações, e muito menos
um animador de platéia, da mesma forma que o aluno não é um espectador
ou ouvinte. Ele é um sujeito atuante, co-responsável pela cena
educativa, parceiro imprescindível do contrato pedagógico.
Na
escola, portanto, não se "repassam" informações simplesmente: ensina-se
o que elas querem dizer, para muito além do que elas dizem... O
trabalho pedagógico-escolar é mais da ordem da desconstrução, da
desmontagem das informações, e isso se faz com o raciocínio
lógico-conceitual propiciado pelos diferentes campos de conhecimento,
representados nas disciplinas escolares.
Claro
está, pois, que o objetivo da ação docente não é "transmitir" ou
difundir determinados produtos, tais como dados, fórmulas ou fatos, mas
fundamentalmente reconstruir o caminho percorrido antes que se chegasse a
tais produtos. É isso, e tão-somente, o que se faz em uma sala de aula!
Por exemplo, não se apregoa apenas que a fórmula da água é H2O, ou que a ordem de sucessão sintática é "sujeitoÆverboÆobjeto", ou ainda que "- x -
= +". Toma-se uma construção lingüística, a estrutura molecular da água
ou os números negativos como questões concretas da vida, "pinçando-as"
do cotidiano, e propõe-se, sob a forma de problematização, o que já é
sabido sobre esses temas. Mas, para tanto, refaz-se o caminho já
percorrido por aqueles que nos precederam, mediante os mesmos problemas,
tomando uma espécie de atalho no itinerário das descobertas. Não é
essa, em última instância, a razão por que se ensina, por que existe
escola: refazer a história dos campos de conhecimento? Revisitar as
respostas já consagradas às velhas inquietações humanas?
Pois
bem, ponto pacífico, o trabalho pedagógico é muito mais do que a
difusão de determinadas informações. Assim, se não obtivermos o suporte
do conhecimento, ou seja, o recuo do pensamento que o conhecimento
sistematizado nos proporciona, como fazer para decodificar as
informações difusas que os meios de comunicação veiculam cotidianamente,
e a granel?
Este
é um outro dado importante, uma distinção basal: enquanto a informação
refere-se ao presente, o conhecimento reporta-se obrigatoriamente ao
passado. O conhecimento é aquilo que subjaz a (ou antecede) determinada
informação, e, portanto, o requisito básico para a sua inteligibilidade.
Por exemplo, a televisão ou o rádio podem veicular uma determinada
notícia - e isso eles fazem às centenas todo dia -
mas se não tivermos disponíveis certas ferramentas, de tal maneira que
possamos compreender o que aquilo significa e implica, essa notícia não é
compreendida por completo e acaba, mais cedo ou mais tarde, sendo
esquecida, apagada, substituída. Ela simplesmente desaparece se não
houver meios propícios para decompô-la, assim como um locus para armazená-la. Em suma, pode-se afirmar que a memória é, antes de tudo, donatária das competências cognitivas.
Por
essa razão, a inteligência humana não é, sob hipótese alguma, um
depósito de informações, mas um centro processador delas. Não apenas
"ingerimos" informações, mas as "digerimos", e isso é o que nos torna
diferentes uns dos outros... Alguns têm uma capacidade de digestão muito
maior do que outros, e essa capacidade se aprende e se potencializa
principalmente no meio escolar.
É
fundamental, portanto, que tenhamos claro que, em sala de aula, o nosso
ponto de partida é a informação, mas o ponto de chegada é o
conhecimento. E essa é uma diferença nem um pouco sutil! Uma máxima
pedagógica recente espelha e, ao mesmo tempo, ameaça esse princípio
básico, do conhecimento como alvo prioritário da intervenção escolar:
"trabalhar com os dados de realidade do aluno".
É
possível, e até desejável, que a ação pedagógica seja desencadeada a
partir dos elementos informativos de que os alunos dispõem, mas o
objetivo docente deve ultrapassar em muito esse escopo restrito, da
disponibilidade cognitiva do aluno e sua pontualidade. O trabalho
escolar visa, sem sombra de dúvida, a transformação do pensamento do
aluno. Em certo sentido, ele se contrapõe aos "dados de realidade"
discente. Antes, o mundo do conhecimento contrapõe os saberes
sistematizados àqueles pragmáticos, do dia-a-dia.
Por
essas e outras, escola é lugar sempre do passado, no bom sentido do
termo. E deve continuar sendo! Muitas vezes conotamos o passado como
velho, antiquado, ultrapassado, em desuso. Não é esse, em absoluto, o
caso do conhecimento escolar. Pode-se afirmar com segurança que, de
certo modo, o conhecimento sistematizado é a grande dádiva que os nossos
antepassados nos legaram, a única herança que as gerações anteriores
podem deixar para as gerações default fonts, para os "forasteiros"
recém-chegados ao velho mundo.
Todos
sabemos que a condição humana é extremamente transitória; somos um
ponto fugaz entre o passado e o futuro. E é no interior dessa evidência
que se figura a "transitividade" do lugar educativo, daquele que se
coloca como lastro, mediador entre novos sujeitos e velhos objetos.
Então, vale a pena perguntar: será que estamos conseguindo que nossos
futuros cidadãos estejam angariando efetivamente tudo aquilo que lhes
foi legado, para que possam usufruir da vida, a que têm direito, com
intensidade e responsabilidade?
Muitas
vezes, entretanto, temos a impressão de que os alunos não têm interesse
algum naquilo que temos para lhes ofertar. Ou então, que os conteúdos
escolares seriam, na verdade, alheios aos interesses imediatos, pontuais
da criança e do jovem contemporâneos. Isso não é bem assim. Vale
lembrar que suas demandas não são tão definidas, ou irredutíveis, a
ponto de não poderem ser transformadas. Além do mais, a curiosidade é
algo que marca fortemente a infância e a adolescência, assim como a
imaginação é a estratégia principal empregada para descobrirem o mundo
intangível à sua volta. Pois então, qual é o papel do professor perante
isso?
No
nosso entendimento, talvez algo muito simples e, ao mesmo tempo,
absolutamente sofisticado: contar histórias... Em sala de aula,
re-contamos histórias – as histórias das conquistas do pensamento humano
(nas ciências, nas humanidades, nas artes, nos esportes). E isso não é
nada desinteressante, quanto mais para uma criança ou um jovem! Na
abstração implicada nesses domínios do pensamento pode-se atestar o
cerne mesmo da perplexidade humana perante a existência. E nisso reside
grande parte do fascínio do viver!
De
mais a mais, não existe nada tão instigante como desvendar a "lógica"
de algo que desconhecíamos total ou parcialmente, o que pode se
apresentar sob a forma de um problema matemático, da análise de um texto
literário, do movimento de astros longínquos, ou da geografia de terras
alheias. Para tanto, exigem-se do aluno apenas imaginação e inquietude -
curiosamente, os mesmos ingredientes básicos da indisciplina,
verificados na engenharia de uma "cola", numa brincadeira maliciosa com o
colega, ou ainda numa piada sobre uma mania ou trejeito qualquer do
professor.
Além
disso, o ritmo do trabalho pedagógico é outro. Não se pode imaginar que
o tempo de "digestão" do conhecimento seja o mesmo das informações. Ele
é, obviamente, mais lento, mais artesanal, assim como a inteligência
humana é mais seletiva, mais qualitativa do que quantitativa. Sala de
aula, portanto, é o lugar onde o pensamento deve se debruçar por alguns
instantes sobre algumas indagações basais da vida, aquelas
corporificadas pelas questões impostas pelos diferentes campos do
conhecimento e seus múltiplos objetos.
Portanto,
vale indagar: temos nos posicionado como aqueles que guiam essa
"viagem" do aluno rumo ao desconhecido, ou, ao contrário, temos tomado o
trabalho de sala de aula como algo maçante e previsível? Temos visto em
nosso aluno a possibilidade de um futuro ex-forasteiro no mundo, alguém
mais complexo e menos afoito do que antes, ou, ao contrário, como
alguém despossuído ou não habilitado integralmente para essa
possibilidade? Temos tomado nosso ofício como uma linha de montagem ou
como um ateliê de uma modalidade singular de arte - aquela de forjar cidadãos?
5. UMA LEITURA PEDAGÓGICA DA INDISCIPLINA ESCOLAR
Até
agora debatemos três grandes hipóteses explicativas da questão
disciplinar, tentando demonstrar que se trata de versões diagnósticas
que não se sustentam por completo, por três razões, pelo menos:
* a primeira
é que elas estão apoiadas em algumas evidências equivocadas e em alguns
pseudo-conceitos (como a visão romanceada da educação de antigamente, a
moralização deficitária por parte dos pais, além da idéia do
conhecimento escolar como algo ultrapassado e desestimulante);
* a segunda razão
é que, de uma forma ou de outra, elas acabam isolando a indisciplina
como um problema individual e anterior do aluno, quando, ao contrário, a
ato indisciplinado revela algo sobre as relações
institucionais-escolares nos dias atuais;
* a terceira
razão deve-se ao fato de que as três hipóteses esquivam-se de levar em
consideração a sala de aula, a relação professor-aluno e as questões
estritamente pedagógicas. Elas esboçam razões para a indisciplina, mas
não apontam caminhos concretos para sua superação ou administração.
Essas
três hipóteses explicativas cometem um engano, já de largada, que é o
de tomar a disciplina como um pré-requisito para a ação pedagógica,
quando, na verdade, a disciplina escolar é um dos produtos ou efeitos do
trabalho cotidiano de sala de aula. E todos sabemos disso de alguma
maneira, por mais que evitemos o peso dessa constatação...
É
sempre bom lembrar que um mesmo aluno indisciplinado com um professor
nem sempre é indisciplinado com os outros. Sua indisciplina, portanto,
parece ser algo que desponta ou se acentua dependendo das
circunstâncias. Por isso, talvez devêssemos nos indagar mais sobre essas
circunstâncias, e, por extensão, despersonalizar o nosso enfrentamento
dos dilemas disciplinares.
Quase
sempre se imagina que é necessário os alunos apresentarem previamente
um conjunto de ações disciplinadas (como: ser "obediente", permanecer
"em silêncio" etc.) para, então, o professor poder iniciar seu trabalho.
E esse é um equívoco sério, porque, em nome dele, perde-se um tempo
precioso tentando-se disciplinar os hábitos discentes.
Qual
uma possível saída, então? Qual outra visão alternativa que não se
paute em nenhuma das três comentadas até agora, ou, mais ainda, que
evite a tentação de incorrer em um pot-pourri de todas elas?
Gostaríamos de propor uma outra hipótese diagnóstica, agora de cunho
explicitamente escolar, para que pudéssemos olhar com outros olhos a
indisciplina "nossa de cada dia", um dos "ossos de nosso ofício"...
Tomando
a indisciplina como uma temática fundamentalmente pedagógica, talvez
possamos compreendê-la inicialmente como um sinal, um indício de que a
intervenção docente não está se processando a contento, que seus
resultados não se aproximam do esperado.
Desse
ponto de vista, a indisciplina passa, então, a ser algo salutar e
legítimo para o professor. Indisciplina é um evento escolar que estaria
sinalizando, a quem interessar, que algo, do ponto de vista pedagógico, e
mais especificamente da sala de aula, não está se desdobrando de acordo
com as expectativas dos envolvidos. O que fazer, então? Como
interpretar claramente o que a indisciplina está indicando de forma
indireta? Vamos por partes.
Em
geral, o trabalho docente é compreendido como a associação de duas,
digamos, grandes "dimensões". Uma que é a dos conteúdos específicos e
outra que é a dos métodos utilizados. Ou seja, no ideário pedagógico, a
fórmula da intervenção docente resume-se a uma equação como esta:
"ensina-se algo de alguma forma".
Gostaríamos,
a partir de agora, de adicionar a essa combinação pedagógica clássica
um terceiro dado, que chamaremos de dimensão "ética" do trabalho
docente. Assim, nossa fórmula pedagógica passaria a contar com mais um
elemento: "ensina-se algo, de alguma forma, a alguém específico". Longe
de psicologizar o ato educativo, o que se quer dizer com isso? A
dimensão dos conteúdos refere-se a "o quê se ensina", a dimensão dos
métodos ao "como se ensina", e a dimensão ética ao "para que se ensina":
aquilo que delimita o valor humano e social da ação escolar, porque
sempre inserido em uma relação concreta.
Essa
é uma distinção importante porque os grandes problemas que enfrentamos
hoje evocam, na maioria das vezes, este "para quê escola?". Acreditamos,
portanto, que grande parte dos nossos dilemas de todo dia exija um
encaminhamento de natureza essencialmente éticos, e não metodológica,
curricular ou burocrática.
Curiosamente,
essa idéia parece apontar na mesma direção para a qual o aluno
indisciplinado está incessantemente nos chamando a atenção. É essa a
pergunta que ele está fazendo o tempo todo: para quê escola? Qual a
relevância e o sentido do estudo, do conhecimento? No quê isso me
transforma? E qual é meu ganho, de fato, com isso?
Temos
conseguido responder essas perguntas quando direcionadas a nós mesmos?
Qual a relevância e o sentido da escola, do ensinar e do aprender para
nós, professores? Escola realmente faz diferença na vida das pessoas? Se
ela marca uma diferença sem precedentes, por que ela geralmente é
conotada como um lugar entediante, supérfluo, aquém da "realidade",
inclusive para nós mesmos? Por que nos esforçamos em imaginar, tal como
nossos alunos, que a "vida mesmo" está para além dos muros escolares? E
por que é que o mundo deixou (e parece deixar cada vez mais) de parecer
com um grande livro aberto?
Todas
essas indagações são inadiáveis hoje em dia porque se o professores, na
qualidade de profissionais privilegiados da educação, tiverem clareza
quanto a seu papel e ao valor do seu trabalho, eles conseguirão ter um
outro tipo de leitura sobre o cotidiano da sala de aula, sobre os
problemas que se apresentam e as estratégias possíveis para o seu
enfrentamento.
Por
incrível que possa parecer à primeira vista, grande parte de nossos
contratempos profissionais pode ser resolvida com algumas idéias simples
e eficazes, mesmo porque muitas das armadilhas que o cotidiano nos arma
parecem ter nossa anuência, quando não nossa autoria. Portanto, rever
posicionamentos endurecidos, questionar crenças arraigadas, confrontar
posicionamentos imutáveis, debater-se contra fatalidades: eis algo que,
antes de ser uma obrigação, significa uma oportunidade ímpar de vivência
dessa profissão, de certo modo, extraordinária.
Para
que isso possa ser otimizado, algumas premissas pedagógicas precisam
ser preservadas (e fomentadas, é claro) no trabalho de todo dia, de sala
de aula. E essas premissas ultrapassam o plano dos conteúdos e dos
métodos, ou melhor, elas os abarcam.
Nada
de muito complexo, ao contrário. Tendo-as em mente, todo o resto
(disciplina, aproveitamento, interesse, credibilidade, sucesso escolar)
virá a contento... Vale a pena apostar!
6. ALGUMAS PREMISSAS PEDÁGOGICAS FUNDAMENTAIS
Há,
a nosso ver, alguns princípios éticos balizadores de nosso trabalho, e
estes implicam, inicialmente, quatro elementos básicos, a saber:
* o conhecimento,
que é o objeto exclusivo da ação do professor. O âmbito de atuação do
professor é o essencialmente pedagógico. Portanto, ater-se ao seu campo
de conhecimento e suas regras particulares de funcionamento, nunca à
moralização dos hábitos, é uma medida fundamental;
* a relação professor-aluno,
que é o núcleo do trabalho pedagógico, uma vez que o aluno é nosso
parceiro, co-responsável pelo sucesso escolar, portanto. Mas é
fundamental que seja preservada a distinção entre os papéis de aluno e
de professor. Não se pode esquecer nunca que é dever do professor
ensinar, assim como é direito do aluno aprender. Isso nem sempre é claro
ainda para o aluno, principalmente aqueles do ensino fundamental, o que
não significa que o mesmo deva acontecer conosco;
* a sala de aula,
que é o contexto privilegiado para o trabalho, o microcosmo concreto
onde a educação escolar acontece de fato. É lá também que os conflitos
têm de ser administrados, gerenciados. É lá, e apenas lá, que se
equacionam os obstáculos e que se atinge uma possível excelência
profissional. Portanto, mandar aluno para fora de sala (e, no limite,
para fora da escola) é um tipo de prática abominável, que precisa ser
abolida urgentemente das práticas escolares brasileiras;
* o contrato pedagógico. Trata-se da proposta de que as regras de convivência, muitas vezes implícitas, que orientam o funcionamento da sala de aula - e daquele campo de conhecimento em particular -
precisam ser explicitadas para todos os envolvidos, conhecidas e
compartilhadas por aqueles inseridos no jogo escolar, mesmo se elas
tiverem de ser relembradas (ou até mesmo transformadas) todos os dias.
Portanto, a medida mais profícua é a seguinte: jamais iniciar um curso
ou um ano letivo sem que as regras de funcionamento dessa "sala de
aula/laboratório" sejam conhecidas, partilhadas e, se possível,
negociadas por todos. É na medida em que todos se sentem co-responsáveis
pelo "código" de regras comuns que se pode ter parceria, solidariedade,
um projeto conjunto e contínuo - o que, no caso do trabalho pedagógico, é mais do que necessidade, é uma exigência.
7. AS CINCO REGRAS ÉTICAS DO TRABALHO DOCENTE
Gostaríamos de finalizar essa breve incursão no tema disciplinar com a proposição de cinco regras éticas, assim
como as temos denominado, as quais falam por si mesmas. Se o professor
levar em consideração essas possíveis balizas de convivência no seu
trabalho cotidiano, os seus "problemas" disciplinares deixarão de ser
prioritários, uma vez que elas instauram a intervenção do professor, e
não as condutas da clientela, como norte da ação escolar. Também, em
nosso ponto de vista, trata-se do único antídoto contra o fracasso
escolar ou os tais "distúrbios de aprendizagem", e até mesmo contra a
terrível falta de credibilidade profissional que nos assola e da qual
padecemos tão severamente nesses últimos tempos. E quais são essas
regras?
* a primeiríssima regra implica a compreensão do aluno-problema como um porta-voz das relações estabelecidas em sala de aula.
O aluno-problema não é necessariamente portador de um "distúrbio"
individual e de véspera, mesmo porque o mesmo aluno "deficitário" com
certo professor pode ser bastante produtivo com outro. Temos que
admitir, a todo custo, que o suposto obstáculo que ele apresenta revela
um problema comum, sempre da relação. Vamos investigá-lo,
interpretando-o como um sinal dos acontecimentos de sala de aula.
Escuta: eis uma prática intransferível!
* a segunda regra ética refere-se à des-idealização do perfil de aluno.
Ou seja, abandonemos a imagem do aluno ideal, de como ele deveria ser,
quais hábitos deveria ter, e conjuguemos nosso material humano concreto,
os recursos humanos disponíveis. O aluno, tal como ele é, é aquele que
carece (apenas) de nós e de quem nós carecemos, em termos profissionais.
* a terceira regra implica a fidelidade ao contrato pedagógico.
É obrigatório que não abramos mão, sob hipótese alguma, do escopo de
nossa ação, do objeto de nosso trabalho, que é apenas um: o
conhecimento. É imprescindível que tenhamos clareza de nossa tarefa em
sala de aula para que o aluno possa ter clareza também da dele. A
visibilidade do aluno quanto ao seu papel é diretamente proporcional à
do professor quanto ao seu. A ação do aluno é, de certa forma, espelho
da ação do professor. Portanto, se há fracasso, o fracasso é de todos; e
o mesmo com relação ao sucesso escolar.
* a quarta regra é a experimentação de novas estratégias de trabalho. Precisamos
tomar o nosso ofício como um campo privilegiado de aprendizagem, de
investigação de novas possibilidades de atuação profissional. Sala de
aula é laboratório pedagógico, sempre! Não é o aluno que não se encaixa
no que nós oferecemos; somos nós que, de certa forma, não nos adequamos
às suas possibilidades. Precisamos, então, reinventar os métodos,
precisamos reinventar os conteúdos em certa medida, precisamos
reinventar nossa relação com eles, para que se possa, enfim, preservar o
escopo ético do trabalho pedagógico.
* a última
regra ética, e com a qual encerramos nosso percurso, é a idéia de que
dois são os valores básicos que devem presidir nossa ação em sala de
aula: a competência e o prazer. Quando podemos (ou conseguimos) exercer esse ofício extraordinário que é a docência com competência e prazer - e, por extensão, com generosidade -, isso se traduz também na maneira com que o aluno exercita o seu lugar. O resto é sorte. E por falar nisso, boa sorte a todos!
(Recebido em 01 de agosto de 1998; aprovado em 19 de novembro de 1998.)
* Professor da Faculdade de Educação da USP.