A indisciplina e a escola atual

1. INTRODUÇÃO
      
Qualquer
 pessoa ligada às práticas escolares contemporâneas, seja como educador,
 seja como educando, ou público mais geral (pais, comunidade etc.), 
consegue ter uma razoável clareza quanto àquilo que nos acostumamos a 
reconhecer como a "crise da educação". Sabemos todos diagnosticar sua 
presença, mas não sabemos direito sua extensão nem suas razões exatas. 
De qualquer modo, o indício mais evidente dessa "crise" é que boa parte 
da população de crianças que ingressam nas escolas não consegue concluir
 satisfatoriamente sua jornada escolar de oito anos mínimos e 
obrigatórios; processo este que se convencionou nomear como "fracasso 
escolar", e que pode ser constatado no simples fato de que um 
considerável número das pessoas à nossa volta, egressos do contexto 
escolar, parece ter uma história de inadequação ou insucesso para 
cont
Este
 certamente é o maior problema enfrentado pela escola brasileira nos 
dias de hoje, e que dá ao Brasil um lugar bastante desconcertante quando
 em comparação com os outros países. Mais precisamente, os índices de 
retenção e evasão escolar no país são semelhantes aos de países 
africanos como a Nigéria e o Sudão. Mais ainda, quando se investiga a 
qualidade do ensino ministrado entre aqueles que permaneceram na escola,
 o quadro não é menos desolador. A esse último efeito temos chamado de 
"fracasso dos incluídos".
      
Convenhamos,
 não é estranho e contraditório que, dependendo do quesito (o econômico 
ou o político, por exemplo), os brasileiros apreciem ser comparados aos 
europeus ou asiáticos, e no quesito educacional nós sejamos forçados a 
nos alocar no mesmo patamar de países castigados da África?
      
Esse
 é um dado alarmante que tem chamado a atenção de muitos, desde a esfera
 governamental até a do cidadão comum, passando pelos profissionais da 
educação. Poder-se-ia dizer, inclusive, que há uma espécie de 
"mal-estar" pairando sobre a escola e o trabalho do professor hoje em 
dia. A própria imagem social da escola parece estar em xeque de tal 
maneira que os profissionais da área acabam acometidos, por exemplo, de 
uma espécie de falta aguda de credibilidade profissional.
      
É
 certo, pois, que grande parte dos problemas que enfrentamos como 
categoria profissional, inclusive no interior da sala de aula, parece 
ter relação (i)mediata com essa lastimável falta de credibilidade da 
intervenção escolar e, por extensão, da atuação do educador. Além disso,
 se a imagem social da escola está ameaçada, algo de ameaçador está 
acontecendo também com a idéia de cidadania no Brasil, uma vez que não 
há cidadania sustentável sem escola.
      
É
 importante frisar que, sem escola, não há a possibilidade de o cidadão 
ter acesso, de fato, aos seus direitos constituídos. Afinal, tornar-se 
cidadão não se restringe ao direito do voto, por exemplo, mas inclui 
direitos outros com vistas a uma vida com dignidade -
 e isso tudo tem a ver mediatamente com escola, pois quanto menor for a 
escolaridade da pessoa, menores também serão suas chances de acesso às 
oportunidades que o mundo atual oferece e às exigências que ele impõe.
      
Entretanto,
 alguns poucos ainda parecem questionar a importância intrínseca da 
escolarização nos dias de hoje. Será isso plausível? De uma coisa 
estejamos certos: num futuro bem próximo, o mundo será implacável com 
aqueles sem escolaridade. Basta olhar à nossa volta e prestar atenção na
 situação concreta das pessoas desempregadas, por exemplo.
      
Pois
 bem, quando alguém se propõe a investigar as razões desse "fantasma" do
 fracasso que ronda a todos nós, ultimamente tem aparecido, dentre as 
muitas razões alegadas pelos educadores (desde as ligadas à esfera 
governamental até aquelas de cunho social), uma figura muito polêmica: o
 "aluno-problema".
      
O
 aluno-problema é tomado, em geral, como aquele que padece de certos 
supostos "distúrbios psico/pedagógicos"; distúrbios estes que podem ser 
de natureza cognitiva (os tais "distúrbios de aprendizagem") ou de 
natureza comportamental, e nessa última categoria enquadra-se um grande 
conjunto de ações que chamamos usualmente de "indisciplinadas". Dessa 
forma, a indisciplina e o baixo aproveitamento dos alunos seriam como 
duas faces de uma mesma moeda, representando os dois grandes males da 
escola contemporânea, geradores do fracasso escolar, e os dois 
principais obstáculos para o trabalho docente.
      
Um
 bom exemplo da justificativa do "aluno-problema" para o fracasso 
escolar é uma espécie de máxima muito recorrente no meio pedagógico, que
 se traduziria num enunciado mais ou menos parecido com este: "se o 
aluno aprende, é porque o professor ensina; se ele não aprende, é porque
 não quer ou porque apresenta algum tipo de distúrbio, de carência, de 
falta de pré-requisito."
      
Mais
 uma vez, não é algo estranho e contraditório para os profissionais da 
área educacional explicar o sucesso escolar como produto da ação 
pedagógica, e o fracasso escolar como produto de outras instâncias que 
não a escola e a sala de aula? Isto é, se entendermos o fracasso escolar
 como efeito de algum problema individual e anterior do aluno, não 
estaremos nos isentando, em certa medida, da responsabilidade sobre 
nossa ação profissional? E mesmo se assim o fosse, o que estaríamos 
fazendo nós para alterar esse quadro cumulativo?
      
Ao
 eleger o aluno-problema como um empecilho ou obstáculo para o trabalho 
pedagógico, a categoria docente corre abertamente o risco de cometer um 
sério equívoco ético, que é o seguinte: não se pode atribuir à clientela
 escolar a responsabilidade pelas dificuldades e contratempos de nosso 
trabalho, nossos "acidentes de percurso". Seria o mesmo que o médico 
supor que o grande obstáculo da medicina atual são as novas doenças, ou o
 advogado admitir que as pessoas que a ele recorrem apresentam-se como 
um empecilho para o exercício "puro" de sua profissão. Curioso, não?
      
Na
 verdade, os tais "alunos-problema" podem ser tomados como ocasião 
privilegiada para que a ação docente se afirme, e que se possa alcançar 
uma possível excelência profissional. O que se busca, no caso de um 
exercício profissional de qualidade, é uma situação-problema, para que 
se possa, na medida do possível, equacioná-la, suplantá-la - o que se oportuniza a partir das demandas "difíceis" da clientela.
      
Pois
 bem, o que fazer, então? Um primeiro passo para reverter essa ordem de 
coisas talvez seja repensar nossos posicionamentos, rever algumas 
supostas verdades que, em vez de nos auxiliar, acabam sendo armadilhas 
que apenas justificam o fracasso escolar, mas não conseguem alterar os 
rumos e os efeitos do nosso trabalho cotidiano.
      
Vejamos
 o caso específico da indisciplina. Na própria maneira de entender o 
fenômeno disciplinar, podemos observar que as hipóteses explicativas 
empregadas usualmente acabam reiterando alguns preconceitos, muitos 
falsos conceitos e outras tantas justificativas para o fracasso e a 
exclusão escolar. Encontram-se razões à profusão, mas alternativas 
concretas de administração, como sabemos, são raras. Nossa tarefa, 
então, a partir de agora passa a ser a de examinar concretamente os 
argumentos que sustentam tais hipóteses.
      
2. A PRIMEIRA HIPÓTESE EXPLICATIVA: O ALUNO "DESRESPEITADOR"
      
Uma
 primeira hipótese de explicação da indisciplina seria a de que "o aluno
 de hoje em dia é menos respeitador do que o aluno de antes, e que, na 
verdade, a escola atual teria se tornado muito permissiva, em comparação
 ao rigor e à qualidade daquela educação de antigamente".
      
Esse
 primeiro entendimento, mais de cunho histórico, da questão disciplinar 
precisa ser repensado urgentemente. E a primeira coisa a admitir é que 
essa escola de antigamente talvez não fosse tão "de excelência" quanto 
gostamos de pensar hoje em dia. Vejamos por quê.
      
Nossa
 memória costuma aplicar alguns truques em nós. Às vezes, é muito fácil 
incorrermos numa espécie de saudosismo exacerbado, idealizando o passado
 e cultivando lembranças de alguns fatos que não aconteceram ou que não 
se desenrolaram exatamente do modo com que nos recordamos deles. 
Portanto, se recuperarmos o modelo dessa escola do passado para 
cotejarmos nossos problemas pedagógicos atuais, precisamos recuperar 
também o contexto histórico da época, pelo menos em parte. Não é 
possível trazer de volta aquela escola sem o entorno sociopolítico de 
então.
      
É
 muito comum nos reportarmos à escola de nossa infância com reverência, 
admiração, nostalgia. Pois bem, na verdade, essa escola anterior aos 
anos 70 era uma escola para poucos, muito poucos. Uma escola elitista, 
portanto. Exclusão, pois, é um processo que já estava lá, nessa escola 
de antigamente, hoje tão idealizada.
      
Eram
 elas escolas militares ou religiosas, e algumas poucas leigas, que 
atendiam uma parcela muito reduzida da população. Perguntemo-nos, por 
exemplo, se ambos nossos pais tiveram escolaridade completa de oito 
anos. Lembremo-nos então de nossos avós, se eles sequer chegaram a 
freqüentar escolas! Quanto mais recuarmos no tempo, mais veremos como 
escola sempre foi um artigo precioso, difícil de encontrar no varejo 
social.
      
Todos
 se lembram, ou pelo menos já ouviram falar, dos exames de admissão e, 
portanto, do níveis "primário" e "ginasial". Pois é, esse é um bom 
exemplo de como essas tais escolas de excelência do passado eram 
fundamentalmente segregacionistas e elitistas, atendendo uma parcela 
pequena e já privilegiada da população. O exame de admissão representava
 o que hoje conhecemos como o vestibular para as universidades públicas,
 já na passagem do primário para o ginásio. Inclusive, vale lembrar que a
 partir do início dos anos 70 o primário e o ginasial deixaram de 
existir, dando lugar ao "primeiro grau" (e mais recentemente ao "ensino 
fundamental"), agora com oito anos consecutivos.
      
Desta feita, oito anos passaram a ser o tempo mínimo e obrigatório de escolaridade -
 uma conquista e tanto! Além disso, o número de vagas e estabelecimentos
 de ensino foi ampliado consideravelmente, democratizando cada vez mais o
 acesso à escola. Entretanto, as conquistas que o povo brasileiro obteve
 do ponto de vista da democratização do acesso ao ensino formal, com a 
abertura de novas escolas/vagas e os oito anos mínimos, continuam um 
projeto inacabado, uma tarefa por se encerrar, uma vez que, decorridas 
quase três décadas da penúltima grande reforma do ensino brasileiro, 
ainda não conseguimos fazer valer integralmente essa proposta de 
democratização lá desencadeada. Outrossim, o grande desafio dos 
educadores atuais passou a ser a permanência "de fato" das crianças na 
escola - o que, sabidamente, se consegue apenas com a qualidade do ensino ofertado.
      
Essa
 é a grande tarefa dos educadores brasileiros na atualidade: fazer com 
que os alunos permaneçam na escola e que progridam tanto quantitativa 
quanto qualitativamente nos estudos. Mesmo porque escolaridade mínima e 
obrigatória é um direito adquirido de todo aquele nascido neste país. E 
desse princípio ético-político, e também legal, não podemos abrir mão 
sob hipótese nenhuma.
      
Quando
 conseguirmos fazer com que a cada criança corresponda uma vaga numa 
escola, bem como condições efetivas para que lá ela permaneça (e queira 
permanecer) por pelo menos oito anos, algo de radicalmente 
revolucionário terá acontecido neste país!
      
Contudo,
 é curioso comparar o contingente da população efetivamente atendido 
pelas escolas hoje e aquele de antigamente. De certa forma, a 
porcentagem efetiva de aproveitamento escolar é ainda semelhante àquela 
de antes. Poucos são aqueles que conseguem permanecer na escola até o 
final do segundo grau, e menos ainda freqüentar uma universidade, 
consolidando-se assim a famosa mas indesejável "pirâmide" educacional 
brasileira. Parece, então, que ainda não conseguimos fazer valer aquele 
célebre artigo da Constituição de 1988, o de número 205, que prega: 
"educação é um direito de todos e um dever do Estado e da família".
      
É
 tarefa de todos nós (principalmente os educadores) garantir uma escola 
de qualidade e para todos, indisciplinados ou não, com recursos ou não, 
com pré-requisitos ou não, com supostos problemas ou não. A inclusão, 
pois, passa a ser o dever "número um" de todo educador preocupado com o 
valor social de sua prática e, ao mesmo tempo, cioso de seus deveres 
profissionais.
      
Outro
 dado que precisa ser reconfigurado com certa imparcialidade quando 
evocamos essas escolas do passado é o fato de que elas eram 
fundamentalmente militarizadas no seu funcionamento cotidiano. E o que 
isso significa? Se buscarmos exemplos em nossa memória, veremos isso com
 clareza: as filas, o pátio, o uniforme, os cânticos, e particularmente a
 relação de medo e coação que tínhamos com as figuras escolares (que 
descuidadamente nomeamos hoje como "de respeito"), revelavam um espírito
 fortemente hierarquizado/hierarquizante da época, desenhando os 
contornos das relações institucionais.
      
É
 possível afirmar, então, que essa suposta escola de excelência de 
antigamente funcionava, na maioria das vezes, na base da ameaça e do 
castigo -
 traços nítidos de uma cultura militarizada impregnada no cotidiano 
escolar daquela época sombria da história brasileira. Estamos nos 
referindo, é claro, à ditadura militar.
      
Assim,
 quando constatamos que nosso aluno de hoje não viveu esses tempos 
históricos obscuros, que ele é fruto de outras coordenadas históricas - e agora estamos nos referindo à abertura democrática -, fica claro que precisamos estabelecer outro tipo de relação civil em sala de aula.
      
É
 óbvio que uma relação de respeito é condição necessária (embora não 
suficiente) para o trabalho pedagógico. No entanto, podemos respeitar 
alguém por temê-lo ou podemos respeitar alguém por admirá-lo. Mas, 
convenhamos, há uma grande diferença entre esses dois tipos de 
"respeito". O primeiro funda-se nas noções de hierarquia e 
superioridade, o segundo, nas de assimetria e diferença. E há uma 
incongruência estrutural entre elas!
      
Antes
 o respeito do aluno, inspirado nos moldes militares, era fruto de uma 
espécie de submissão e obediência cegas a um "superior" na hierarquia 
escolar. Hoje, o respeito ao professor não mais pode advir do medo da 
punição - assim como nos quartéis -
 mas da autoridade inerente ao papel do "profissional" docente. 
Trata-se, assim, de uma transformação histórica radical do lugar social 
das práticas escolares. Hoje, o professor não é mais um encarregado de 
distribuir e fazer cumprir ordens disciplinares, mas um profissional 
cujas tarefas nem sequer se aproximam dessa função disciplinadora, 
apassivadora, silenciadora, de antes.
      
Em
 contraposição, boa parte dos profissionais da educação ainda parece 
guardar ideais pedagógicos que preservam, de certa forma, a imagem dessa
 escola de antigamente e desse professor repressor, castrador. Muitas 
vezes, para esses profissionais o bom aluno do dia-a-dia é aquele 
calado, imóvel, obediente. Será este um bom aluno, de fato?
      
É
 muito estranho tomar uma descrição do cotidiano escolar do século 
passado ou do meio desse século, e perceber que as escolas atuais têm um
 funcionamento ainda parecido, em termos das normas disciplinares, com 
aquelas escolas do passado. A punição, a represália, a submissão e o 
medo ainda parecem habitar silenciosamente as salas de aula, só que 
agora, por exemplo, por meio da avaliação. Não é verdade que muitas 
vezes alguns professores chegam a ameaçar seus alunos com a promessa de 
provas difíceis, notas baixas etc? Não será isso também outra estratégia
 dissimulada de exclusão? O que dizer, então, das expulsões ou das 
"transferências"?
      
Sob
 esse ponto de vista, talvez a indisciplina escolar esteja nos indicando
 que se trata de uma recusa desse novo sujeito histórico a práticas 
fortemente arraigadas no cotidiano escolar, assim como uma tentativa de 
apropriação da escola de outra maneira, mais aberta, mais fluida, mais 
democrática. Trata-se do clamor de um novo tipo de relação civil, 
confrontativa na maioria das vezes, pedindo passagem a qualquer custo. 
Nesse sentido, a indisciplina estaria indicando também uma necessidade 
legítima de transformações no interior das relações escolares e, em 
particular, na relação professor-aluno. Assim, resta uma questão: afinal
 de contas, escola para quê?
      
Sabemos
 hoje que, por meio da exclusão de grande maioria da população, aquela 
escola do passado não visava, em absoluto, o preparo para o exercício da
 cidadania. E a escola e o professor de hoje? O que eles visam, a bem da
 verdade? Qual o seu papel e função? São diferentes daqueles da escola 
de antes? Se assim o forem, quais resultados temos obtido concretamente?
 Enfim, estamos a serviço ainda da exclusão ditatorial ou da inclusão 
democrática?
3. A SEGUNDA HIPÓTESE EXPLICATIVA: O ALUNO "SEM LIMITES"
      
Outra
 hipótese muito em voga no meio escolar, produto de nosso suposto e, às 
vezes, perigoso "bom senso" prático, diz respeito à suposição de que "as
 crianças de hoje em dia não têm limites, não reconhecem a autoridade, 
não respeitam as regras, e a responsabilidade por isso é dos pais, que 
teriam se tornado muito permissivos". Quase todos parecem concordar com 
essa hipótese do "déficit moral" como explicativa da indisciplina.
      
Pois
 bem, esse tipo de entendimento da questão disciplinar, mais de cunho 
psicológico, merece pelo menos dois reparos: o primeiro, com relação à 
idéia de ausência absoluta de limites e do desrespeito às regras; o 
segundo, sobre a suposta permissividade dos pais.
      
Vejamos
 o primeiro: se prestarmos um pouco de atenção nos alunos mais 
indisciplinados fora da sala de aula, num jogo coletivo, por exemplo, 
veremos o quanto as regras são muito bem conhecidas pelas crianças e 
adolescentes. Não é nada estranho a um jovem de hoje em dia a vivência 
de uma situação qualquer de acordo com regras muito bem estabelecidas, 
rígidas na maioria das vezes.
      
Um
 bom exemplo disso se encontra quando, num jogo ou brincadeira infantil,
 alguém não cumpre aquilo que foi acordado previamente entre os 
participantes, e este assim considerado "desviante" ou infrator é 
severamente punido ou mesmo expulso do jogo. No limite, pode-se afirmar 
que um "governo" infantil é nitidamente despótico, porque não prevê 
jurisprudências, prerrogativas, maleabilidade.
      
Nesse
 sentido, as crianças, quando ingressam na escola, já conhecem muito bem
 as regras de funcionamento de uma coletividade qualquer, mesmo porque 
elas são inerentes a qualquer tipo de atividade humana, a qualquer tipo 
de relação grupal. Podemos encontrar um outro exemplo concreto disso na 
língua. Quando escolhemos uma palavra ou uma construção lingüística 
específica para narrar algo, estamos nos sujeitando automaticamente a um
 conjunto já dado de regras. E isso todos fazemos, queiramos ou não. A 
criança e o jovem também o fazem, talvez até com mais força e veemência 
do que os adultos.
      
Isso
 é tão factual que, curiosamente, no mundo infantil as regras nem sequer
 permitem muitas exceções. Quando uma criança diz, por exemplo, "eu 
fazi" em vez de "eu fiz", ou "eu trazi" em vez de "eu trouxe", ela está 
demonstrando o quanto está apegada a uma norma invariante já dada e que 
descarta possíveis alterações, desvios. Ela está sendo, portanto, 
rigorosa ao extremo. Dito de outra maneira, os seus "limites", inclusive
 intelectuais, são extensivos, implacáveis - ao contrário do que possa parecer à primeira vista.
      
Desse
 modo, não se pode sustentar, nem na teoria nem na prática, que as 
crianças padeçam de falta generalizada de regra e de limite, embora esta
 idéia esteja muito disseminada no meio escolar. Ao contrário, a 
inquietação e a curiosidade infantis ou do jovem, que antes eram 
simplesmente reprimidas, apagadas do cotidiano escolar, podem hoje ser 
encaradas como excelentes ingredientes para o trabalho de sala de aula. 
Só depende do manejo delas...
      
Não
 é evidente que quanto mais engajado o aluno estiver nas atividades 
propostas, maior será o rendimento do trabalho do professor? E que 
quanto maior for a reapropriação das regras da matemática, da língua ou 
das ciências, maiores serão o aproveitamento e o prazer em aprendê-las? 
Uma vez de posse da "mecânica" de determinado campo de conhecimento (as 
operações matemáticas, da gramática, das ciências, das artes, dos 
esportes etc.), o pensamento do aluno parece fluir com maior rapidez e 
plasticidade.
      
Pois
 bem, um segundo reparo a essa idéia da falta de limites da criança e do
 jovem refere-se à suposta permissividade dos pais que, por sua vez, 
estaria criando obstáculos para o professor em sala de aula. Segundo boa
 parte dos professores, a família, em certa medida, não estaria ajudando
 o trabalho do professor, pois as crianças seriam frutos da 
"desestruturação", do "despreparo" e do "abandono" dos pais (vale 
lembrar, oriundos também das décadas de 60/70). E mais ainda, os 
professores teriam se tornado quase "reféns" de crianças tirânicas, 
deixados à mercê de crianças "sem educação". Será isso verdade?
      
É
 muito comum imaginarmos que "criança mal-educada em casa" converte-se 
automaticamente em "aluno indisciplinado na escola". Pois alertemos que 
isso nem sempre é necessariamente verdadeiro. Não é possível generalizar
 esse diagnóstico para justificar os diferentes casos de indisciplina 
com os quais deparamos. Além disso, há uma evidência irrefutável de que 
os mesmos alunos indisciplinados com alguns professores podem ser 
bastante colaboradores com outros.
      
Ora,
 precisamos recuperar alguns consensos quanto às funções da família e da
 escola, distinguindo claramente os papéis de pai e de professor. 
Família e escola não são a mesma coisa, e uma não é a continuidade 
natural da outra; porque se assim o fosse, também o inverso da equação 
acima deveria ser igualmente plausível. Ou seja: "aluno indisciplinado 
na escola" converter-se-ia em "filho mal-educado em casa". Estranha essa
 última fórmula, não?
      
Quando
 desponta algum entrave de ordem disciplinar na sala de aula, uma das 
atitudes usuais por parte dos professores é convocar as autoridades 
escolares, e estes, os pais para que "dêem um jeito no seu filho". 
Imaginemos se, a cada vez que o filho desses mesmos pais apresentasse um
 problema disciplinar em casa, eles convocassem o professor para que 
este também "desse um jeito no seu aluno". Muito estranho, não? Esse 
exemplo ficcional revela o quanto se costuma confundir e, às vezes, 
justapor os âmbitos de competências, os raios de ação das instituições 
escola e família. Portanto, precisamos admitir um consenso básico, 
muitas vezes esquecido no dia-a-dia escolar: o de que aluno não é filho,
 e professor não é pai.
      
Em
 geral, a maioria dos professores imagina que o trabalho de 
disciplinarização moral da criança (de introjeção das regras e, 
portanto, da constituição dos famigerados "limites"), a cargo mormente 
dos pais, é um pré-requisito para o trabalho de sala de aula. E esta 
idéia, embora correta em parte, também precisa ser repensada, pelo menos
 em parte.
      
Quando
 falamos genericamente em "educação" de uma criança ou jovem, 
compreendemo-la como resultado conjunto da intervenção da família e da 
escola. Embora essas duas instituições basais sejam complementares e 
possam chegar a se articular, elas são bastante diferentes em suas 
raízes, objetos e objetivos. O trabalho familiar diz respeito à 
moralização da criança -
 essa é a função primordial dos pais ou seus substitutos. A tarefa do 
professor, por sua vez, não é moralizar a criança. O objeto do trabalho 
escolar é fundamentalmente o conhecimento sistematizado, e seu objetivo,
 a recriação deste. O resto é efeito colateral, indireto, mediato.
      
No
 caso da família, o que está em foco é a ordenação da conduta da 
criança, por meio da moralização de suas atitudes, seus hábitos; no caso
 da escola, o que se visa é a ordenação do pensamento do aluno, por meio
 da reapropriação do legado cultural, representado pelos diferentes 
campos de conhecimento em pauta. Uma diferença e tanto, não é mesmo?
      
Mas
 mesmo se se argumentasse que determinadas crianças não apresentam as 
posturas morais mínimas para o trabalho de sala de aula (caso isso fosse
 possível...), esse argumento admitiria a seguinte réplica: trata-se de 
um complicador, jamais um impeditivo para o trabalho em torno do objeto 
conhecimento, porque a docência sequer implica um trabalho semelhante 
àquele realizado pela família.
      
Entretanto,
 muitos professores, diante das dificuldades do dia-a-dia, acabam se 
colocando como tarefa principal a normatização moral dos hábitos da 
criança e do adolescente (leia-se aluno agora) para que, só a partir 
daí, ele possa desencadear o trabalho do pensamento. Um bom exemplo 
disso é um outro tipo de máxima muito freqüente no meio pedagógico que 
reza, a nosso ver, equivocadamente: "para ser professor, é preciso antes
 ser um pouco pai, amigo, conselheiro etc."
      
Esse tipo de enfrentamento do trabalho pedagógico é desaconselhável por três razões, pelo menos:
      * em primeiro lugar, trata-se de um desperdício da qualificação e do talento específico do professor, porque ele não se profissionalizou para ser uma espécie de pai "postiço". Para uma ocupação como a paternidade não se exige uma preparação profissional - cada um é pai ou mãe de um jeito peculiar e assistemático. No caso do professor, exige-se uma preparação lenta e especializada, devendo ele atuar de maneira semelhante aos seus colegas de profissão e de modo diverso dos profissionais de outras áreas;
* em segundo lugar, trata-se de um desvio de função, porque ele não foi contratado para exercer tarefas parentais, e dele não se espera isso. Por mais que o trabalho em sala de aula demande muitas vezes exigências adicionais ao âmbito estritamente pedagógico, não se podem delegar ao professor funções para as quais ele não esteja explicitamente habilitado. É preciso, então, que o trabalho docente restrinja-se a um alvo específico: o conhecimento sistematizado, por meio da recriação de um campo lógico-conceitual particular. Não confundir seu papel com o de outros profissionais e outras ocupações: eis uma tarefa de fôlego para o professor de hoje em dia!;
* em terceiro, trata-se de uma quebra do "contrato" pedagógico, porque o seu trabalho deixa de ser realizado. Se o professor abandona seu posto, se ele não cumpre suas funções específicas, quem fará isso por ele? Se o professor não se responsabilizar imediatamente pelo conhecimento, quem o fará?
Como
 em todas as outras relações sociais/institucionais (médico-paciente, 
patrão-empregado, marido-mulher etc.), na relação pedagógica existe um 
contrato implícito - um conjunto de regras funcionais -
 que precisa ser conhecido e respeitado para que a ação possa se 
concretizar a contento. E é curioso constatar que os próprios alunos têm
 uma clareza impressionante quanto a essas balizas contratuais do 
encontro pedagógico. Sem dúvida nenhuma, eles sabem reconhecer quando o 
professor está exercendo suas funções, cumprindo seu papel. O professor 
competente e cioso de seus deveres não é, em absoluto, um desconhecido 
para os alunos; muito ao contrário. Estes sabem reconhecer e respeitar 
as regras do jogo quando ele é bem jogado, da mesma forma que eles 
também sabem reconhecer quando o professor abandona seu posto.
      
Nesse
 sentido, a indisciplina parece ser uma resposta clara ao abandono ou à 
habilidade das funções docentes em sala de aula, porque é só a partir de
 seu papel evidenciado concretamente na ação em sala de aula que eles 
podem ter clareza quanto ao seu próprio papel de aluno, complementar ao 
de professor. Afinal, as atitudes de nossos alunos são um pouco da 
imagem de nossas próprias atitudes. Não é verdade que, de certa forma, 
nossos alunos espelham, pelo menos em parte, um pouco de nós mesmos?
      
Por
 essa razão, talvez se possa entender a indisciplina como energia 
desperdiçada, sem um alvo preciso ao qual se fixar, e como uma resposta,
 portanto, ao que se oferta ao aluno. Enfim, a indisciplina do aluno 
pode ser compreendida como uma espécie de termômetro da própria relação 
do professor com seu campo de trabalho, seu papel e suas funções.
      
Sob
 esse aspecto, valeria indagar: qual tem sido o teor de nosso 
envolvimento com essa profissão? Temos nos posicionado mais como agentes
 moralizadores ou como professores em sala de aula? Temos nos queixado 
das famílias mais do que deveríamos ou, ao contrário, temos nos dedicado
 com mais afinco ainda ao nosso campo de trabalho? Temos encarado os 
alunos, nossos parceiros de trabalho, como filhos desregrados, frutos de
 famílias desagregadas, ou como alunos inquietos, frutos de uma escola 
pouco desafiadora intelectualmente? Enfim, indisciplina é uma resposta 
ao fora ou ao dentro da sala de aula?
      
4. A TERCEIRA HIPÓTESE EXPLICATIVA: O ALUNO "DESINTERESSADO"
      
Ainda,
 uma terceira hipótese que os professores levantam freqüentemente sobre 
as razões da indisciplina é que "para os alunos, a sala de aula não é 
tão atrativa quanto os outros meios de comunicação, e particularmente o 
apelo da televisão. Por isso, a falta de interesse e a apatia em relação
 à escola. A saída, então, seria ela se modernizar com o uso, por 
exemplo, de recursos didáticos mais atraentes e assuntos mais atuais".
      
Esse
 tipo de raciocínio, mais de cunho metodológico, também merece alguns 
reparos. O principal deles refere-se ao fato mais do que evidente de que
 escola não é um meio de comunicação. Da mesma forma que distinguimos 
anteriormente as instituições família e escola, aqui faz-se importante a
 distinção escola e mídia.
      
Enquanto
 a mídia (os diversos meios de comunicação como a televisão, o rádio, o 
jornal, o próprio computador atualmente etc.) têm como função primordial
 a difusão da informação, a escola deve ter como objetivo principal a 
reapropriação do conhecimento acumulado em certos campos do saber - aquilo que constitui as diversas disciplinas de um currículo.
      
Ainda,
 os meios de comunicação podem ter como objetivo o entretenimento, o 
lazer. Escola, ao contrário, é lugar de trabalho árduo e complexo, mas 
nem por isso menos prazeroso... Por essa razão, assim como afirmamos 
anteriormente que professor não é pai e aluno não é filho, é preciso 
acrescentar: o professor não é um difusor de informações, e muito menos 
um animador de platéia, da mesma forma que o aluno não é um espectador 
ou ouvinte. Ele é um sujeito atuante, co-responsável pela cena 
educativa, parceiro imprescindível do contrato pedagógico.
      
Na
 escola, portanto, não se "repassam" informações simplesmente: ensina-se
 o que elas querem dizer, para muito além do que elas dizem... O 
trabalho pedagógico-escolar é mais da ordem da desconstrução, da 
desmontagem das informações, e isso se faz com o raciocínio 
lógico-conceitual propiciado pelos diferentes campos de conhecimento, 
representados nas disciplinas escolares.
      
Claro
 está, pois, que o objetivo da ação docente não é "transmitir" ou 
difundir determinados produtos, tais como dados, fórmulas ou fatos, mas 
fundamentalmente reconstruir o caminho percorrido antes que se chegasse a
 tais produtos. É isso, e tão-somente, o que se faz em uma sala de aula!
      
Por exemplo, não se apregoa apenas que a fórmula da água é H2O, ou que a ordem de sucessão sintática é "sujeitoÆverboÆobjeto", ou ainda que "- x -
 = +". Toma-se uma construção lingüística, a estrutura molecular da água
 ou os números negativos como questões concretas da vida, "pinçando-as" 
do cotidiano, e propõe-se, sob a forma de problematização, o que já é 
sabido sobre esses temas. Mas, para tanto, refaz-se o caminho já 
percorrido por aqueles que nos precederam, mediante os mesmos problemas,
 tomando uma espécie de atalho no itinerário das descobertas. Não é 
essa, em última instância, a razão por que se ensina, por que existe 
escola: refazer a história dos campos de conhecimento? Revisitar as 
respostas já consagradas às velhas inquietações humanas?
      
Pois
 bem, ponto pacífico, o trabalho pedagógico é muito mais do que a 
difusão de determinadas informações. Assim, se não obtivermos o suporte 
do conhecimento, ou seja, o recuo do pensamento que o conhecimento 
sistematizado nos proporciona, como fazer para decodificar as 
informações difusas que os meios de comunicação veiculam cotidianamente,
 e a granel?
      
Este
 é um outro dado importante, uma distinção basal: enquanto a informação 
refere-se ao presente, o conhecimento reporta-se obrigatoriamente ao 
passado. O conhecimento é aquilo que subjaz a (ou antecede) determinada 
informação, e, portanto, o requisito básico para a sua inteligibilidade.
 Por exemplo, a televisão ou o rádio podem veicular uma determinada 
notícia - e isso eles fazem às centenas todo dia -
 mas se não tivermos disponíveis certas ferramentas, de tal maneira que 
possamos compreender o que aquilo significa e implica, essa notícia não é
 compreendida por completo e acaba, mais cedo ou mais tarde, sendo 
esquecida, apagada, substituída. Ela simplesmente desaparece se não 
houver meios propícios para decompô-la, assim como um locus para armazená-la. Em suma, pode-se afirmar que a memória é, antes de tudo, donatária das competências cognitivas.
      
Por
 essa razão, a inteligência humana não é, sob hipótese alguma, um 
depósito de informações, mas um centro processador delas. Não apenas 
"ingerimos" informações, mas as "digerimos", e isso é o que nos torna 
diferentes uns dos outros... Alguns têm uma capacidade de digestão muito
 maior do que outros, e essa capacidade se aprende e se potencializa 
principalmente no meio escolar.
      
É
 fundamental, portanto, que tenhamos claro que, em sala de aula, o nosso
 ponto de partida é a informação, mas o ponto de chegada é o 
conhecimento. E essa é uma diferença nem um pouco sutil! Uma máxima 
pedagógica recente espelha e, ao mesmo tempo, ameaça esse princípio 
básico, do conhecimento como alvo prioritário da intervenção escolar: 
"trabalhar com os dados de realidade do aluno".
      
É
 possível, e até desejável, que a ação pedagógica seja desencadeada a 
partir dos elementos informativos de que os alunos dispõem, mas o 
objetivo docente deve ultrapassar em muito esse escopo restrito, da 
disponibilidade cognitiva do aluno e sua pontualidade. O trabalho 
escolar visa, sem sombra de dúvida, a transformação do pensamento do 
aluno. Em certo sentido, ele se contrapõe aos "dados de realidade" 
discente. Antes, o mundo do conhecimento contrapõe os saberes 
sistematizados àqueles pragmáticos, do dia-a-dia.
      
Por
 essas e outras, escola é lugar sempre do passado, no bom sentido do 
termo. E deve continuar sendo! Muitas vezes conotamos o passado como 
velho, antiquado, ultrapassado, em desuso. Não é esse, em absoluto, o 
caso do conhecimento escolar. Pode-se afirmar com segurança que, de 
certo modo, o conhecimento sistematizado é a grande dádiva que os nossos
 antepassados nos legaram, a única herança que as gerações anteriores 
podem deixar para as gerações default fonts, para os "forasteiros" 
recém-chegados ao velho mundo.
      
Todos
 sabemos que a condição humana é extremamente transitória; somos um 
ponto fugaz entre o passado e o futuro. E é no interior dessa evidência 
que se figura a "transitividade" do lugar educativo, daquele que se 
coloca como lastro, mediador entre novos sujeitos e velhos objetos. 
Então, vale a pena perguntar: será que estamos conseguindo que nossos 
futuros cidadãos estejam angariando efetivamente tudo aquilo que lhes 
foi legado, para que possam usufruir da vida, a que têm direito, com 
intensidade e responsabilidade?
      
Muitas
 vezes, entretanto, temos a impressão de que os alunos não têm interesse
 algum naquilo que temos para lhes ofertar. Ou então, que os conteúdos 
escolares seriam, na verdade, alheios aos interesses imediatos, pontuais
 da criança e do jovem contemporâneos. Isso não é bem assim. Vale 
lembrar que suas demandas não são tão definidas, ou irredutíveis, a 
ponto de não poderem ser transformadas. Além do mais, a curiosidade é 
algo que marca fortemente a infância e a adolescência, assim como a 
imaginação é a estratégia principal empregada para descobrirem o mundo 
intangível à sua volta. Pois então, qual é o papel do professor perante 
isso?
      
No
 nosso entendimento, talvez algo muito simples e, ao mesmo tempo, 
absolutamente sofisticado: contar histórias... Em sala de aula, 
re-contamos histórias – as histórias das conquistas do pensamento humano
 (nas ciências, nas humanidades, nas artes, nos esportes). E isso não é 
nada desinteressante, quanto mais para uma criança ou um jovem! Na 
abstração implicada nesses domínios do pensamento pode-se atestar o 
cerne mesmo da perplexidade humana perante a existência. E nisso reside 
grande parte do fascínio do viver!
      
De
 mais a mais, não existe nada tão instigante como desvendar a "lógica" 
de algo que desconhecíamos total ou parcialmente, o que pode se 
apresentar sob a forma de um problema matemático, da análise de um texto
 literário, do movimento de astros longínquos, ou da geografia de terras
 alheias. Para tanto, exigem-se do aluno apenas imaginação e inquietude -
 curiosamente, os mesmos ingredientes básicos da indisciplina, 
verificados na engenharia de uma "cola", numa brincadeira maliciosa com o
 colega, ou ainda numa piada sobre uma mania ou trejeito qualquer do 
professor.
      
Além
 disso, o ritmo do trabalho pedagógico é outro. Não se pode imaginar que
 o tempo de "digestão" do conhecimento seja o mesmo das informações. Ele
 é, obviamente, mais lento, mais artesanal, assim como a inteligência 
humana é mais seletiva, mais qualitativa do que quantitativa. Sala de 
aula, portanto, é o lugar onde o pensamento deve se debruçar por alguns 
instantes sobre algumas indagações basais da vida, aquelas 
corporificadas pelas questões impostas pelos diferentes campos do 
conhecimento e seus múltiplos objetos.
      
Portanto,
 vale indagar: temos nos posicionado como aqueles que guiam essa 
"viagem" do aluno rumo ao desconhecido, ou, ao contrário, temos tomado o
 trabalho de sala de aula como algo maçante e previsível? Temos visto em
 nosso aluno a possibilidade de um futuro ex-forasteiro no mundo, alguém
 mais complexo e menos afoito do que antes, ou, ao contrário, como 
alguém despossuído ou não habilitado integralmente para essa 
possibilidade? Temos tomado nosso ofício como uma linha de montagem ou 
como um ateliê de uma modalidade singular de arte - aquela de forjar cidadãos?
      
5. UMA LEITURA PEDAGÓGICA DA INDISCIPLINA ESCOLAR
      
Até
 agora debatemos três grandes hipóteses explicativas da questão 
disciplinar, tentando demonstrar que se trata de versões diagnósticas 
que não se sustentam por completo, por três razões, pelo menos:
      * a primeira é que elas estão apoiadas em algumas evidências equivocadas e em alguns pseudo-conceitos (como a visão romanceada da educação de antigamente, a moralização deficitária por parte dos pais, além da idéia do conhecimento escolar como algo ultrapassado e desestimulante);
* a segunda razão é que, de uma forma ou de outra, elas acabam isolando a indisciplina como um problema individual e anterior do aluno, quando, ao contrário, a ato indisciplinado revela algo sobre as relações institucionais-escolares nos dias atuais;
* a terceira razão deve-se ao fato de que as três hipóteses esquivam-se de levar em consideração a sala de aula, a relação professor-aluno e as questões estritamente pedagógicas. Elas esboçam razões para a indisciplina, mas não apontam caminhos concretos para sua superação ou administração.
Essas
 três hipóteses explicativas cometem um engano, já de largada, que é o 
de tomar a disciplina como um pré-requisito para a ação pedagógica, 
quando, na verdade, a disciplina escolar é um dos produtos ou efeitos do
 trabalho cotidiano de sala de aula. E todos sabemos disso de alguma 
maneira, por mais que evitemos o peso dessa constatação...
      
É
 sempre bom lembrar que um mesmo aluno indisciplinado com um professor 
nem sempre é indisciplinado com os outros. Sua indisciplina, portanto, 
parece ser algo que desponta ou se acentua dependendo das 
circunstâncias. Por isso, talvez devêssemos nos indagar mais sobre essas
 circunstâncias, e, por extensão, despersonalizar o nosso enfrentamento 
dos dilemas disciplinares.
      
Quase
 sempre se imagina que é necessário os alunos apresentarem previamente 
um conjunto de ações disciplinadas (como: ser "obediente", permanecer 
"em silêncio" etc.) para, então, o professor poder iniciar seu trabalho.
 E esse é um equívoco sério, porque, em nome dele, perde-se um tempo 
precioso tentando-se disciplinar os hábitos discentes.
      
Qual
 uma possível saída, então? Qual outra visão alternativa que não se 
paute em nenhuma das três comentadas até agora, ou, mais ainda, que 
evite a tentação de incorrer em um pot-pourri de todas elas? 
Gostaríamos de propor uma outra hipótese diagnóstica, agora de cunho 
explicitamente escolar, para que pudéssemos olhar com outros olhos a 
indisciplina "nossa de cada dia", um dos "ossos de nosso ofício"...
      
Tomando
 a indisciplina como uma temática fundamentalmente pedagógica, talvez 
possamos compreendê-la inicialmente como um sinal, um indício de que a 
intervenção docente não está se processando a contento, que seus 
resultados não se aproximam do esperado.
      
Desse
 ponto de vista, a indisciplina passa, então, a ser algo salutar e 
legítimo para o professor. Indisciplina é um evento escolar que estaria 
sinalizando, a quem interessar, que algo, do ponto de vista pedagógico, e
 mais especificamente da sala de aula, não está se desdobrando de acordo
 com as expectativas dos envolvidos. O que fazer, então? Como 
interpretar claramente o que a indisciplina está indicando de forma 
indireta? Vamos por partes.
      
Em
 geral, o trabalho docente é compreendido como a associação de duas, 
digamos, grandes "dimensões". Uma que é a dos conteúdos específicos e 
outra que é a dos métodos utilizados. Ou seja, no ideário pedagógico, a 
fórmula da intervenção docente resume-se a uma equação como esta: 
"ensina-se algo de alguma forma".
      
Gostaríamos,
 a partir de agora, de adicionar a essa combinação pedagógica clássica 
um terceiro dado, que chamaremos de dimensão "ética" do trabalho 
docente. Assim, nossa fórmula pedagógica passaria a contar com mais um 
elemento: "ensina-se algo, de alguma forma, a alguém específico". Longe 
de psicologizar o ato educativo, o que se quer dizer com isso? A 
dimensão dos conteúdos refere-se a "o quê se ensina", a dimensão dos 
métodos ao "como se ensina", e a dimensão ética ao "para que se ensina":
 aquilo que delimita o valor humano e social da ação escolar, porque 
sempre inserido em uma relação concreta.
      
Essa
 é uma distinção importante porque os grandes problemas que enfrentamos 
hoje evocam, na maioria das vezes, este "para quê escola?". Acreditamos,
 portanto, que grande parte dos nossos dilemas de todo dia exija um 
encaminhamento de natureza essencialmente éticos, e não metodológica, 
curricular ou burocrática.
      
Curiosamente,
 essa idéia parece apontar na mesma direção para a qual o aluno 
indisciplinado está incessantemente nos chamando a atenção. É essa a 
pergunta que ele está fazendo o tempo todo: para quê escola? Qual a 
relevância e o sentido do estudo, do conhecimento? No quê isso me 
transforma? E qual é meu ganho, de fato, com isso?
      
Temos
 conseguido responder essas perguntas quando direcionadas a nós mesmos? 
Qual a relevância e o sentido da escola, do ensinar e do aprender para 
nós, professores? Escola realmente faz diferença na vida das pessoas? Se
 ela marca uma diferença sem precedentes, por que ela geralmente é 
conotada como um lugar entediante, supérfluo, aquém da "realidade", 
inclusive para nós mesmos? Por que nos esforçamos em imaginar, tal como 
nossos alunos, que a "vida mesmo" está para além dos muros escolares? E 
por que é que o mundo deixou (e parece deixar cada vez mais) de parecer 
com um grande livro aberto?
      
Todas
 essas indagações são inadiáveis hoje em dia porque se o professores, na
 qualidade de profissionais privilegiados da educação, tiverem clareza 
quanto a seu papel e ao valor do seu trabalho, eles conseguirão ter um 
outro tipo de leitura sobre o cotidiano da sala de aula, sobre os 
problemas que se apresentam e as estratégias possíveis para o seu 
enfrentamento.
      
Por
 incrível que possa parecer à primeira vista, grande parte de nossos 
contratempos profissionais pode ser resolvida com algumas idéias simples
 e eficazes, mesmo porque muitas das armadilhas que o cotidiano nos arma
 parecem ter nossa anuência, quando não nossa autoria. Portanto, rever 
posicionamentos endurecidos, questionar crenças arraigadas, confrontar 
posicionamentos imutáveis, debater-se contra fatalidades: eis algo que, 
antes de ser uma obrigação, significa uma oportunidade ímpar de vivência
 dessa profissão, de certo modo, extraordinária.
      
Para
 que isso possa ser otimizado, algumas premissas pedagógicas precisam 
ser preservadas (e fomentadas, é claro) no trabalho de todo dia, de sala
 de aula. E essas premissas ultrapassam o plano dos conteúdos e dos 
métodos, ou melhor, elas os abarcam.
      
Nada
 de muito complexo, ao contrário. Tendo-as em mente, todo o resto 
(disciplina, aproveitamento, interesse, credibilidade, sucesso escolar) 
virá a contento... Vale a pena apostar!
6. ALGUMAS PREMISSAS PEDÁGOGICAS FUNDAMENTAIS
      
Há,
 a nosso ver, alguns princípios éticos balizadores de nosso trabalho, e 
estes implicam, inicialmente, quatro elementos básicos, a saber:
      * o conhecimento, que é o objeto exclusivo da ação do professor. O âmbito de atuação do professor é o essencialmente pedagógico. Portanto, ater-se ao seu campo de conhecimento e suas regras particulares de funcionamento, nunca à moralização dos hábitos, é uma medida fundamental;
* a relação professor-aluno, que é o núcleo do trabalho pedagógico, uma vez que o aluno é nosso parceiro, co-responsável pelo sucesso escolar, portanto. Mas é fundamental que seja preservada a distinção entre os papéis de aluno e de professor. Não se pode esquecer nunca que é dever do professor ensinar, assim como é direito do aluno aprender. Isso nem sempre é claro ainda para o aluno, principalmente aqueles do ensino fundamental, o que não significa que o mesmo deva acontecer conosco;
* a sala de aula, que é o contexto privilegiado para o trabalho, o microcosmo concreto onde a educação escolar acontece de fato. É lá também que os conflitos têm de ser administrados, gerenciados. É lá, e apenas lá, que se equacionam os obstáculos e que se atinge uma possível excelência profissional. Portanto, mandar aluno para fora de sala (e, no limite, para fora da escola) é um tipo de prática abominável, que precisa ser abolida urgentemente das práticas escolares brasileiras;
* o contrato pedagógico. Trata-se da proposta de que as regras de convivência, muitas vezes implícitas, que orientam o funcionamento da sala de aula - e daquele campo de conhecimento em particular - precisam ser explicitadas para todos os envolvidos, conhecidas e compartilhadas por aqueles inseridos no jogo escolar, mesmo se elas tiverem de ser relembradas (ou até mesmo transformadas) todos os dias. Portanto, a medida mais profícua é a seguinte: jamais iniciar um curso ou um ano letivo sem que as regras de funcionamento dessa "sala de aula/laboratório" sejam conhecidas, partilhadas e, se possível, negociadas por todos. É na medida em que todos se sentem co-responsáveis pelo "código" de regras comuns que se pode ter parceria, solidariedade, um projeto conjunto e contínuo - o que, no caso do trabalho pedagógico, é mais do que necessidade, é uma exigência.
7. AS CINCO REGRAS ÉTICAS DO TRABALHO DOCENTE
      
Gostaríamos de finalizar essa breve incursão no tema disciplinar com a proposição de cinco regras éticas, assim
 como as temos denominado, as quais falam por si mesmas. Se o professor 
levar em consideração essas possíveis balizas de convivência no seu 
trabalho cotidiano, os seus "problemas" disciplinares deixarão de ser 
prioritários, uma vez que elas instauram a intervenção do professor, e 
não as condutas da clientela, como norte da ação escolar. Também, em 
nosso ponto de vista, trata-se do único antídoto contra o fracasso 
escolar ou os tais "distúrbios de aprendizagem", e até mesmo contra a 
terrível falta de credibilidade profissional que nos assola e da qual 
padecemos tão severamente nesses últimos tempos. E quais são essas 
regras?
      
* a primeiríssima regra implica a compreensão do aluno-problema como um porta-voz das relações estabelecidas em sala de aula. O aluno-problema não é necessariamente portador de um "distúrbio" individual e de véspera, mesmo porque o mesmo aluno "deficitário" com certo professor pode ser bastante produtivo com outro. Temos que admitir, a todo custo, que o suposto obstáculo que ele apresenta revela um problema comum, sempre da relação. Vamos investigá-lo, interpretando-o como um sinal dos acontecimentos de sala de aula. Escuta: eis uma prática intransferível!
* a segunda regra ética refere-se à des-idealização do perfil de aluno. Ou seja, abandonemos a imagem do aluno ideal, de como ele deveria ser, quais hábitos deveria ter, e conjuguemos nosso material humano concreto, os recursos humanos disponíveis. O aluno, tal como ele é, é aquele que carece (apenas) de nós e de quem nós carecemos, em termos profissionais.
* a terceira regra implica a fidelidade ao contrato pedagógico. É obrigatório que não abramos mão, sob hipótese alguma, do escopo de nossa ação, do objeto de nosso trabalho, que é apenas um: o conhecimento. É imprescindível que tenhamos clareza de nossa tarefa em sala de aula para que o aluno possa ter clareza também da dele. A visibilidade do aluno quanto ao seu papel é diretamente proporcional à do professor quanto ao seu. A ação do aluno é, de certa forma, espelho da ação do professor. Portanto, se há fracasso, o fracasso é de todos; e o mesmo com relação ao sucesso escolar.
* a quarta regra é a experimentação de novas estratégias de trabalho. Precisamos tomar o nosso ofício como um campo privilegiado de aprendizagem, de investigação de novas possibilidades de atuação profissional. Sala de aula é laboratório pedagógico, sempre! Não é o aluno que não se encaixa no que nós oferecemos; somos nós que, de certa forma, não nos adequamos às suas possibilidades. Precisamos, então, reinventar os métodos, precisamos reinventar os conteúdos em certa medida, precisamos reinventar nossa relação com eles, para que se possa, enfim, preservar o escopo ético do trabalho pedagógico.
* a última regra ética, e com a qual encerramos nosso percurso, é a idéia de que dois são os valores básicos que devem presidir nossa ação em sala de aula: a competência e o prazer. Quando podemos (ou conseguimos) exercer esse ofício extraordinário que é a docência com competência e prazer - e, por extensão, com generosidade -, isso se traduz também na maneira com que o aluno exercita o seu lugar. O resto é sorte. E por falar nisso, boa sorte a todos!
(Recebido em 01 de agosto de 1998; aprovado em 19 de novembro de 1998.)
       
* Professor da Faculdade de Educação da USP.
FONTE:http://www.scielo.br
 
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